"Somos bruxos e anjos ao mesmo tempo"

Dirige o serviço de Pediatria do Instituto Português de Oncologia de Lisboa desde 2009, 14 anos depois de ali começar a trabalhar. Natural de Moura, Filomena Pereira optou pela especialidade sem saber bem como - a pediatria estava no fim da sua lista mas foi a que escolheu.
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Gostou de oncologia, ficou no respetivo serviço no Hospital de Santa Maria. Trinta anos passados, Filomena Pereira diz: "Posso ir fazer criação de cães ou decoração de interiores, mas não posso fazer mais nada dentro da medicina."

Passámos por várias meninas todas aperaltadas. Há uma razão para isso?

Estimulamos a coquetterie das miúdas, e nos rapazes as roupas de cores abertas, o estar bonitos. Isso alimenta outras dimensões do seu universo e as crianças fazem isso muito bem. O cancro infantil é uma zona de violência que não podemos controlar. Tentamos anular as outras violências. Os DUROS (Doentes que Ultrapassaram a Realidade Oncológica com Sucesso) passam por aqui, este é o espaço onde eles se movem, um espaço comum aos que estão doentes.

Quantos doentes tem a consulta dos DUROS?

Cerca de 800. Funciona desde 2007, com crianças que pararam o tratamento há mais de cinco anos. A consulta vai sendo alimentada todos os anos, tanto que vamos ter de dispersá-la. Não temos capacidade para seguir todos os sobreviventes, temos de fazer uma triagem dos de maior risco e tentar disseminar o seguimento destes doentes pelas unidades de saúde de proximidade.

Nos centros de saúde têm pessoal com formação específica?

Em 2005, começámos a partilhar o seguimento de doentes em tratamento, incluindo os terminais. Informámos as unidades de saúde da zona de influência, perguntámos quem queria fazer formação. Em Faro, por exemplo, há miúdos que só vêm para cá quando é preciso, é como uma extensão à distância do nosso hospital de dia. Ou corre bem e ficamos todos contentes, ou corre mal e há um apoio local em fases terminais. No caso dos DUROS, cada doente tem um plano individual de vigilância e pode ser acompanhado por pessoas formadas e informadas, em contacto direto connosco. Deixa de haver o problema do medo do doente que teve cancro, em quem ninguém pode mexer. Em vez de virem aqui vão ao médico de família.

Quantas pessoas trabalham consigo?

Somos dez médicos, dois em início. Não há especialidade de oncologia pediátrica. Vêm para aqui acabados de formar em pediatria, depois têm uma formação de dois ou três anos.

Parece um número pequeno para um serviço com 200 casos novos por ano.

Temos em tratamento ativo mais de 400 crianças de cada vez.

O que mudou desde que trabalha nesta área?

Era muito diferente, muito mais sofrido. Assisti em 30 anos a coisas fantásticas, não só uma alteração brutal da taxa de sobrevivência mas a alterações na qualidade de vida dos doentes.

E quando perde um doente?

Lembro-me de todos os que perdi. São familiares, de certa forma. Quando começo a ter noção de que vou perder um doente, a minha atenção afetiva dirige-se mais para os pais. É uma "ajuda" à perda, estratégias individuais. Há uns que nos doem mais, uns são mais derrota... Mesmo assim, temos uma taxa de sobrevivência, aos cinco anos, acima dos 80%, é muito boa.

Hoje o tema foi o conforto.

Conforto e dignidade. Não há aqui nada de luxo, há dignidade.

As famílias parecem gratas ao apoio que lhes dão, não apenas o clínico.

Há muitos pais de meninos que perdemos que continuam a vir cá para conversar. Há alguns que não conseguem entrar aqui... Isto é um universo à parte do quotidiano, da vida civil. É muito difícil para os pais terem lá fora interlocutores sobre esta experiência. Quem é que a partilhou? Fomos nós. Somos um bocadinho bruxos e anjos ao mesmo tempo.

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