Somerset Maugham em Lisboa
Não convém cair num excesso de otimismo e menos ainda nas difíceis circunstâncias atuais, ao ponto de defender, como o bom do Pangloss, que nos encontramos no melhor dos mundos possíveis. No entanto, convém recordar todas essas pequenas coisas, humildes e quotidianas, que nos tornaram mais suportáveis estes longos dias de pandemia. Estou a falar do silêncio das ruas, das mensagens de ânimo e esperança que temos transmitido uns aos outros, de todos esses gestos solidários, tão necessários como a água e os alimentos, dessa luz nova, limpa e clara como o mais puro cristal, com que Lisboa desperta a cada manhã, desses tons de um verde profundo, esquecidos durante tantos anos, com os quais se cobriram de repente as árvores de parques e jardins.
Desde há algumas semanas, enquanto o automóvel desfruta de um merecido descanso na silenciosa obscuridade da garagem, e fazemos todas as nossas pequenas deslocações a pé, damo-nos conta de que saudamos as pessoas com quem nos cruzámos duas ou três vezes no regresso das compras na loja da esquina ou depois do curto passeio diário. Retomamos nas cidades um costume que, felizmente, persiste nas vilas e nas aldeias. Também de repente, ao passar pela Praça das Flores, percebemos que saudamos aqueles amigos que assomam às suas varandas desfrutando do ar fresco da tarde e detemo-nos um bom bocado a comentar com eles as novidades do dia. Uma manhã, enquanto esperamos no passeio pela nossa vez de entrar na farmácia, começamos a conversar sem problemas com aquela senhora tão simpática que assoma à janela do primeiro andar, a qual nunca havíamos visto antes, e com quem descobrimos, entre espantados e divertidos, partilhar a mesma admiração e devoção pelo saudoso Antonio Tabucchi.
Os poucos veículos que circulam por Lisboa recuperaram o sossego de tempos passados em que não existiam esses engarrafamentos intermináveis que fazem perder a calma a muitos condutores. Respeitam-se as passadeiras de peões. Inclusivamente, muito antes de chegarmos àquela esquina que temos intenção de atravessar, em frente à embaixada de França, um automóvel cinzento, um pouco passado de moda, detém-se prudentemente. A matrícula chama-nos a atenção: PR. Olhamos através da janela aberta e vemos o Presidente da República que fala ao telefone e, ao mesmo tempo, responde com um sorriso à nossa saudação.
São dias em que, por fim, temos tempo e serenidade para pôr alguma ordem no caos de livros que se foram acumulando nos meses anteriores à chegada do maldito vírus. Entre muitos outros volumes, as obras de Somerset Maugham voltaram a ver a luz do dia. São uns exemplares magníficos publicados pela Editora Livros do Brasil, de Lisboa. Infelizmente não têm a indicação do ano, fazem parte daquela coleção na qual também se publicaram, com umas cuidadas traduções para português, as obras de autores tão célebres como Albert Camus, John Steinbeck ou Romain Rolland. Recordo que os adquiri depois de um divertido almoço num certo clube do Chiado, do que talvez fale nalgum outro momento, precisamente no dia anterior a ser decretado o estado de emergência. Foi na livraria alfarrabista do senhor Bobone, em São Roque, antes de voltar aos afazeres e papeladas próprios da que,em breve, seria a última tarde normal de trabalho.
O anterior proprietário desses volumes teve o bom gosto de os mandar encadernar à holandesa, com formosas nervuras e dourados na lombada, sem que, infelizmente, conste alguma etiqueta que nos revele quem foi o artesão que levou a cabo tão cuidadoso trabalho. Tão-pouco se esqueceu desse pormenor fundamental que é incluir uma fita de seda vermelha que sirva para marcar o ponto daleitura. Esse amante dos livros, teve também o cuidado de apor o seu ex-libris em cada um dos tomos, para que assim a leitura fosse precedida pela do seu nome e da sua elegante divisa: Continenti labore omnia superare.
O surpreendente destes livros, tão cuidados pelo seu anterior proprietário, é que todos permaneciam intonsos. Para os leitores mais jovens, que talvez não tenham visto nenhum livro com essa característica, recordarei que houve um tempo em que, antes de ler um livro recém-adquirido, era necessário rasgar com a ajuda de um abre-cartas as dobras das folhas que compunham as suas páginas. Ainda que fosse evidente que ninguém tinha lido nenhuma das obras que acabava de adquirir, os motivos prestavam-se a todo o tipo de elucubrações: teria o anterior proprietário falecido antes de desfrutar da leitura? Ou terá, talvez, tido de sair precipitadamente de Portugal, quem sabe por que razões? Ou mesmo, inclusivamente, tratar-se-ia de um desses estanhos amantes do livro enquanto objeto, a quem o conteúdo não importa minimamente? Pode ser qualquer coisa.
Poder-se-iam contar muitas coisas sobre Somerset Maugham, como as suas aventuras durante a Grande Guerra, quando espiava em Moscovo a favor do Império Britânico, ou os seus contínuos escândalos na Riviera francesa até fugir da invasão nazi. Foi um desses autores que, como Anatole France ou Vicente Blasco Ibañez, depois de alcançarem em vida o êxito e a fama, se viram relegados ao esquecimento, quando não ao desprezo, talvez pela constante e insuportável pressão das modas e novidades editoriais.
É uma autêntica lástima que já ninguém leia Somerset Maugham. Pode ser que ainda alguém recorde alguma das suas obras, Servidão Humana ou, talvez, O Fio da Navalha, mas já ninguém desfruta da narração das suas vibrantes aventuras, plenas de saborosos pormenores, pela China, Japão, Bornéu, Malásia, Indochina ou Birmânia. Ao longo de numerosos volumes, Somerset Maughamretratou com mestria estilos de vida que a voragem da História arrastou consigo. Podemos recordar o cínico filósofo chinês, antigo estudante em Heidelberg, perdido na miséria de uma remota cidade da Manchúria ou o excêntrico administrador de uma selvática província birmanesa que, entre nuvens de mosquitos e debaixo e um calor abrasador, se veste todas as noites de smoking branco. Também as cenas diplomáticas na Pequim imperial, onde um encarregado de negócios da Guatemala e um ministro conselheiro do Montenegro conspiram, ou aquelas lentas travessias dos transatlânticos, desde Singapura até à metrópole, com escalas em Ceilão, Áden e Porto Saíde, onde se soltam, pelo menos mentalmente, todo o tipo de paixões reprimidas pelas convenções sociais.
As páginas de Somerset Maugham são também um escaparate magnífico no qual se mostram os passatempos de uma classe ociosa e privilegiada, tanto em Londres, com as reuniões e jantares nos clubes de Pall Mall, como nos lugares mais remotos do Império Britânico. Assim, descobrimos o ambiente do bar do Raffles Hotel em Singapura, onde se preparava a melhor versão desse cocktail mítico que foi o Gin Pahit, ou a sordidez dos antros de ópio em Hong Kong, ou a decadência dos salões elegantes nas concessões internacionais de Xangai ou dos clubes de oficiais em Kuala Lumpur, onde os funcionários coloniais matavam o tempo a jogar bridge acompanhado de brandy and soda.
A leitura dessas páginas faz com que revivamos os perigos das viagens pelo sudeste asiático dos princípios do século XX, atravessando selvas em busca de cidades perdidas, rodeados sempre de todo o tipo de perigos, desde o ataque do temível tigre bengali até à espreita constante dos caçadores de cabeças.
Todas essas aventuras, que tinham permanecido adormecidas nas páginas intonsas de Somerset Maugham, são as que, graças ao cuidado do anterior proprietário dos volumes e aos bons ofícios do senhor Bobone, me alegraram muitas dessas estranhas horas que temos vivido ao longo das últimas semanas.
Funcionário da UE e escritor espanhol residente em Portugal