Socorro, estão-me apagando!...
O primeiro poema decorado da minha vida? Aqui vai: «Gilmar, Djalma Santos, Bellini e Nilton Santos, Didi e Orlando, Garrincha, Pelé, Vavá, Zito e Zagallo.» Recitei-o aos berros, num domingo, 29 de junho de 1958, dia da minha primeira manifestação. Eu tinha 10 anos, nunca tinha visto nenhuma das personagens que abrilhantavam tão belos versos, mas elas eram minhas. Eu berrava e abanava, na caixa aberta da carrinha Chevrolet do meu pai, um pano, já não sei se amarelo ou verde, mas próprio para aquela alegria. Quando chegámos ao fim da ilha de Luanda, virei-me para o nosso mar - de facto, rio - e gritei ainda mais alto. Eu também era campeão do mundo. Que se soubesse do outro lado da margem.
Li mais crónicas de Rachel de Queiroz do que metade do governo brasileiro. Um dia, em João Pessoa, Paraíba, uma maria-rapaz espantou-se por eu conhecer a palavra estropício. Acabámos amigos porque eu lhe disse que Maria Bonita era mais braba que o Lampião. Convenci-a definitivamente quando lhe disse o verdadeiro nome do cangaceiro: Virgulino Ferreira da Silva. Outra prova: como naturalmente tapioca ao pequeno-almoço.
O meu ponto é o seguinte: sou brasileiro. Digo-o porque sim. Sou tão brasileiro quanto era italiano o Mazzola, avançado de centro que foi substituído na seleção canarinha pelo Vavá (na celebração que refiro dois parágrafos atrás) e que voltou para a terra dos pais dele, depois do Mundial de 58, para servir a seleção italiana no Mundial de 62, com o nome de Altafini. Um dia também volto para Manaus, porque o meu calor de infância é esse e a forma dos muros dos quintais também.
Enfim, sou brasileiro quase de berço (olhem, como Carmen Miranda). E é nessa condição quase plena que quero falar da tal medida. Não leram? O governo brasileiro dá bolsas para graduação no estrangeiro e Portugal era o segundo país, depois dos EUA, preferido pelos estudantes brasileiros. Pois o ministro da Educação Aloizio Mercadante acaba de vetar Portugal como destino, para obrigar os jovens brasileiros a sair do conforto da língua única. Quer dizer, o que tem sido sempre apregoado como uma vantagem para unir os dois países, a língua, descobriu-se agora ser empecilho.
Estou aqui, o brasileiro que há em mim, e é nessa condição que estou furibundo. Tenho a sensação de que querem apagar parte de mim. Já vejo por todo o lado conspirações com o fito de rasurar o Ferreira da Silva do cangaceiro, deitar abaixo os muros de Manaus e, só em Cachoeiro de Itapemirim, dar cabo da raça dos Braga, de onde vieram o cronista Rubem Braga e o cantor Roberto Carlos (Braga). Querem arrasar uma parte do ADN brasileiro como já aconteceu em Dilma Roussef, a única chefe de Estado mundial com pai mas de mãe desconhecida. Tudo se sabe do ramo paternal da presidente, do engenheiro Roussef, de Luben, Bulgária. Mas de onde vieram os Coimbra Silva que emprestaram o ventre?
Exagero no apagamento? Temo que não. Há dias, no jornal O Globo contava-se que o Convento de São Boaventura, em Itaboraí, no estado do Rio de Janeiro, estava a ser recuperado. Construído em 1670 pelos franciscanos, abandonado desde 1841, estava em ruínas. Uma foto mostrava um edifício já sem teto e comido pelo capim, mas ainda com o frontão triangular da igreja, a torre e as janelas e portas dando para as naves e o claustro. Disse a coordenadora científica do projeto, Maria Dulce Gaspar, do Museu Nacional, que «esses sítios arqueológicos ajudam a contar a história de nossos antepassados negros e índios».
Estão a ver? Antepassados dos brasileiros, desse antigo 1670, só negros e índios. Aliás, como prova a torre sineira, típica dos bororós, e as janelas debruadas a pedra, trazidas para o Brasil pelos iorubas do Benim. Um dia, em Niterói, entro num táxi e ele continua vazio.