Sobreviveram por pouco no dia em que viram "chover e nevar chamas"

Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Góis, Pampilhosa da Serra, Penela e Sertã foram os concelhos mais afetados pelos fogos. Morreram 65 pessoas. O DN falou com quem teve a sorte do seu lado
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"Não tinha de ser. Não tinha de ser", repete João Paulo ao recordar os incêndios de Pedrógão Grande, o dia em que viram "chover" e "nevar chamas". "Só tive tempo de pegar na malita. Nem sei como tive tanta calma", recorda Alzira. "Não tinha de estar em casa, percebi logo que só por milagre estaria de pé", lembra Palmira. Fernando festejava o aniversário da filha - em que estavam 24 crianças, algumas não tendo lá os pais -,viu o fogo aproximar-se e decidiu fugir rapidamente. "Dou graças a Deus por isso, tinha a casa cheia. Ardeu tudo." Testemunhos de quem sobreviveu por muito pouco à maior tragédia das suas vidas, por uma questão de segundos.

João Paulo Martins seguia na "estrada da morte", sem o saber, dirigia-se em direção a um cemitério de carros e de pessoas. Despistou-se, a carrinha bateu num sinal, já não saiu dali. Palmira é viúva, os filhos cresceram e seguiram as suas vidas, passa muitos dias em casa da cunhada, fazendo companhia uma à outra. Assim aconteceu naquele sábado, enquanto a sua habitação ardia. Fernando festejava o aniversário da filha, com 22 crianças e 14 adultos, mas não tiveram tempo de comer o bolo. Fugiram para a "estrada da morte", pensavam que o fogo ia no sentido contrário, e, sem saber como, conseguiram inverter a marcha. Alzira andou a tarde toda a molhar a terra e as paredes de sua casa, até que teve de se render, subir pela estrada com todas as suas forças para não ser apanhada pelas labaredas.

Os incêndios de junho do ano passado afetaram de forma mais significativa os concelhos de Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Góis, Pampilhosa da Serra, Pedrógão Grande, Penela e Sertã, na região centro.

O primeiro carro que não ardeu

João Paulo Martins, 45 anos, levava a mãe, que tem 82 anos e mora na Moita, "Estava tudo a arder, um pandemónio." Seguiam para Carregal Fundeiro, onde vive e onde pensava estar a mulher e os filhos. "Cheguei a estar a salvo. Quando o meu filho telefona a dizer que estavam na estrada que vai para Figueiró dos Vinhos [N-236 1], debaixo de fogo. Inverti a marcha para ir ter com eles." O fumo era tanto que deixou de ver a estrada, conduziu mais 700 metros, despistou-se, bateu num sinal de trânsito, estancou na berma. "O meu era o primeiro carro que não ardeu depois do sítio onde morreram as 47 pessoas."

Passava pouco das 20.00, chamas por todo o lado, um clarão enorme, um calor insuportável, percebeu que tinha batido junto a uma casa. Tirou a mãe do carro, mas não conseguia abrir o portão. "Atirei-me contra ele umas sete vezes para ver se o arrombava." O alcatrão queimava e a mãe, nem sabem como, estava descalça. "Tirei a minha camisola, dei-lha para meter debaixo dos pés e saltei para dentro do quintal", recorda. Tentou acalmar-se, percebeu que o portão afinal não estava trancado. "Sentei a minha mãe num canto, procurei água, nada! Tudo a arder, não conseguia respirar. Depois, ouço água a cair, segui o barulho e vi uma torneira que pingava para um tanque cheio. Encontrei um balde, enchia e deitava água por cima da cabeça da minha mãe e da minha."

Viu logo que estava na casa de férias de Lina Alves, em Valinha Fontinha, ao quilómetro quinto da N 236-I, de quem vem de Castanheira de Pera, batizada depois dos incêndios de "estrada da morte", 47 mortes nesta via num total de 65 vítimas mortais.

Lina Alves, 67 anos, é filha da terra, mas trabalha e vive em Leiria. Acompanhou as notícias à distância, temeu não encontrar a casa de xisto dos pais, que tão bem remodelou. "O João Paulo salvou-se a ele e à mãe e salvou-me a casa", acredita. O homem sorri: "Não sei se tive uma intervenção tão grande. As folhas a arder caiam na caleira e no quintal e eu ia deitando água." A habitação vizinha ficou sem telhas, janelas e paredes danificadas, inabitável.

João lembra que chegou a estar a salvo dos incêndios, só que a mulher, Adelaide Martins, 46 anos, não conseguiu manter-se na habitação. "Estava eu, a minha filha [20 anos], o meu filho [15] e a filha de uma vizinha [5], quando começaram a "chover chamas", tudo a arder à minha volta. Em frente estava a Serração Progresso, que ardeu. Começaram aos gritos, meti-os no carro e fugi para Figueiró dos Vinhos. A minha filha tinha vindo de Castanheira, onde ardia tudo, pensou que seria melhor seguir no sentido inverso, afinal o fogo vinha de Figueiró. O carro parou, não circulava nem para trás nem para a frente, dava às chaves e nada. Estivemos ali dentro um quarto de hora, com chamas por todo o lado. Olhei para o retrovisor e vi que a roda de trás tinha agarrado o alcatrão e começara a arder. O carro não ardeu nem explodiu. Salvou-nos a vida. Gritei para sairmos, peguei na menina pela mão, corremos, corremos num túnel de chamas. Vimos um carro com duas pessoas e pedimos para entrar, o condutor não estava com muita vontade, mas lá entrámos os quatro. Foi uma sorte, não tinha de acontecer", conta Adelaide.

Nessa altura, passou uma ambulância e levou os seis ocupantes, mas tiveram de se desviar para assistir uma equipa de bombeiros apanhados pelo fogo - um deles acabaria por falecer. "Não sabia o que se passava, parecia um filme de terror", diz a mulher, pausadamente. "Isto começou por volta das das 20.00 e antes das 20.30 já tinha morrido aquela gente toda. Ninguém tem culpa, foi a natureza, vi chamas a caírem do céu, choviam chamas. Lugares onde era impossível entrar alguém." Concorda o marido: "As pessoas reclamam com os bombeiros. Fui um deles e não só não tinham meios como foi tudo muito rápido."

Hoje Adelaide é apoiada pela psicóloga Ana Margarida Teixeira (ver entrevista), um acompanhamento contínuo e elogiado pelos utentes. "Tem-nos ajudado muito, os pais são daqui e ela veio para cá, mora com a avó de segunda a quinta-feira. Os outros psicólogos vinham um dia e iam-se embora. Ficavam piores do que nós."

A psicóloga deslocou-se para o concelho na segunda-feira seguinte aos incêndios para ajudar "como cidadã". Disponibilizou-se depois para ficar como técnica no Centro de Saúde de Castanheira de Pera, onde existe uma equipa de saúde mental comunitária, criada há sete anos. Divide este trabalho como o de clínica e investigação em Lisboa. "Mantemos uma política de proximidade e a nossa intervenção tem também visitas ao domicílio", explica.

O carro de Adelaide ardeu completamente, "era o primeiro depois do sítio em que morreu toda aquela gente. Foi para a sucata". O de João Paulo saiu de lá a andar, mas foram precisos 1700 euros para o recuperar. "Os carros começaram a arder pela forra do capô", explica João. Ambos estavam segurados contra terceiros, sem direito a indemnizações.

Adelaide e João são donos da Laidenil, uma empresa de construção civil, responsável pelas obras de dez habitações após os incêndios. Fica na zona industrial de Safrugo, à entrada de Castanheira de Pera. Parece um parque fantasma, a maioria das empresas estão fechadas, as estradas e ruas cheias de buracos. E o futuro não é risonho. "Depois dos holofotes, vai voltar ao que sempre foi. Falta o desenvolvimento, que sempre faltou. E ficámos pior, ardeu 90% da floresta", diz João.

Salvou-a o convívio com a cunhada

Em Sarzedas do Vasco, como muitas outras povoações do interior do país, não faltam casas por habitar ou degradadas, em ruínas. O que faz que a vivenda de Palmira Martins, 79 anos, se torne ainda mais isolada. Os três filhos cresceram, fizeram as suas famílias, ela entretinha-se com os animais, as fazendas e o Faísca. "Anda sempre comigo, coitadinho." O cão lá anda à sua roda, enquanto a mulher apanha umas vides, para se aquecer no inverno. "Aqui faz muito frio", diz.

Naquele sábado descansava na casa de familiares, no caminho para a localidade mais próxima, Sarzeda de Pedro, onde morreram seis pessoas. "Estava com a minha cunhada, irmã do meu marido, que morreu há dois anos. Dei a comida ao gado e fui ter com ela, foi a minha sorte, não voltei a dormir na minha casa. Ardeu tudo, as minhas coisas, tinha lá tudo. Quem imaginava isto?", conta, relembrando aquelas horas de angústia. "Ficámos sem nadinha, nem uma pereira, um eucalipto, um castanheiro, uma macieira, nada, tinha um castanheiro que dava tanta castanha e neste ano nem rebentou, nem a horta, nada."

Ao lado há um anexo, onde tem uma lareira e forno, mas agora a habitação de dois pisos está ocupada por operários e andaimes, prevê-se o fim das obras para breve. "Dizem que está pronta em agosto, vamos ver se é assim", diz Palmira, que hoje passa os dias em redor da casa, na companhia da filha Filomena Silva, de 44 anos. E a maior parte do tempo é passada a limpar as redondezas das ervas, que, com este tempo de chuva, crescem sem parar. "Tem de se fazer alguma coisa, não se pode parar."

No próximo domingo terá passado um ano da noite que nunca esquecerá. Viu as chamas lavrar pelas suas fazendas e habitação, percebeu a força do vento, ouviu o crepitar da madeira a arder ser interrompido por estrondos. Teve logo pouca esperança de que a sua casa estivesse de pé. "Todas as que eram de madeira por dentro arderam. Da maneira como tudo ardia, só por milagre é que a minha estaria inteira. Vim no outro dia de manhã, para ver miséria. Não consegui recuperar nada. Salvou-se o curral das galinhas e um cabrito."

A filha e o genro ainda tentaram resguardar o gado, o porco, os coelhos e cabritos, mas tiveram de fugir. "O problema foi o vento, começou a pôr as árvores no chão, com o fumo, o calor, as chamas, era impossível fazer mais. Tivemos de ir a Coimbra levar oxigénio", conta Filomena. Palmira Martins revela uma azáfama, imprópria para um lugar tão calmo. É uma forma de sentir menos a ausência da casa, que passou de geração em geração, por "mais de 200 anos".

A família não voltou à casa

Uma habitação recuperada com bom gosto e os materiais da região, o xisto e a madeira, mas com as comodidades da vida atual. Percebe-se isso pelo que restou do incêndio: interior totalmente destruído; não se vislumbra madeira ou móveis; as janelas e as portas em alumínio derretidas; os vidros partidos. A piscina intacta.

A vivenda tinha sido comprada há oito anos, numa encosta da aldeia da Moita, com vista para o verde do vale e da serra. Era assim antes de 17 de junho, agora veem-se árvores despidas de folhas, tudo negro, com o verde da rama de eucalipto a trepar por troncos pretos, erva e silvas a crescer por todo o lado. Fernando Mendes, 54 anos, comerciante de bolos, tinha precisado de dois anos para a recuperar com "poupanças e suor". Mora no concelho de Alcobaça e foi ao volante da carrinha da venda que descobriu um magnífico sítio para passar as férias e os fins de semana.

A filha de Fernando faz anos a 17 de junho, no ano entrava no 14.º ano de vida, quando chegaram à habitação logo pela manhã para o que previam ser um dia divertido, com o tempo a ajudar, temperaturas elevadas. Vinte e quatro crianças, 12 ou 14 adultos, que para lá se deslocaram em sete carros. Todos a festejar. "Vimos o fogo por volta das 19.30, ainda estava longe mas suficientemente perto para decidirmos ir embora. Eram muitas crianças, estavam com medo", conta com reticências Fernando. Não gosta de se lembrar do que aconteceu.

Os sete carros fugiram em direção a Figueiró dos Vinhos, para apanhar a IC 8 e daí seguir para Alcobaça, andaram uns três quilómetros com labaredas de um lado e do outro da estrada. "Quando vi o fogo em Vila Facaia [Pedrógão Grande], percebi que íamos em direção às chamas, tentámos inverter a marcha. Fui parar a uma valeta, ligava a chave e não conseguia pôr o motor a trabalhar. Entreguei um terço a uma das crianças, voltei a ligar a chave e o carro começou a andar. Não sei como, consegui passar pelo meio dos outros carros, só eu sei o que passei", recorda Fernando. Depois seguiram para a Lousã e depois em direção a Coimbra, chegaram são e salvos às respetivas casas. "Agradeço a Nossa Senhora, que nos salvou!"

Na Moita, ficou mesa posta, o bolo de aniversário, a casa de quem sai sem tempo para arrumações. Clotilde Serra, 64 anos, a vizinha, chegara há pouco tempo do lar onde trabalha, em Castanheira de Pera. "Disse-lhes para não se preocuparem com nada, que eu arrumava e guardava tudo. Não cumpri o que prometi!", diz, ainda hoje a chorar. Nessa noite, valeu-se de uma mangueira e água, conseguiu salvar a casa, mas queimou-se o telhado, entretanto já arranjado, e os currais.

Situação diferente foi a de Fernando, que apanhou com as consequências dos lixos alheios. "A casa encostada à minha estava em ruínas, só silvas, caiu ali o fogo e foi tudo a eito. Tive muita sorte, podíamos estar todos mortos", diz. É essa gratidão que faz que os dias não sejam mais penosos. As ruínas e as silvas continuam lá, como muitas das árvores, ardidas e muito terreno por limpar.

Fernando voltou à aldeia quatro dias depois dos incêndios, mas nem a mulher ou os filhos lá voltaram. "Gosto muito das pessoas da Moita, mas não tenho ideia de voltar para lá. A família nem quer falar disso." Sendo casa de segunda habitação, não tem direito a apoio para a recuperar e o orçamento que recebeu apontava para uma fatura de 200 mil euros. Não tem nem dinheiro nem forças para a recuperação. Vai tentar vendê-la.

A liberdade que o campo dá

Alzira está a viver em "casa emprestada", em Moredos, à entrada de Castanheira de Pera. É uma das quatro pessoas realojadas pela equipa dos Médicos do Mundo em colaboração com a Segurança Social. A casa que tinha em Rapos foi destruída e ainda espera por obras.

Alzira manteve-se até ao último momento na sua habitação, na descida para um vale, os vizinhos mais próximos eram mãe e filha, holandesas, que ali passavam férias. "Muito boas pessoas e também gostam de mim. Mas já me disseram que vão vender a casa, é pena", conta Alzira Luís, com 73 anos de vida passados a cuidar do campo que, agora, tanta falta lhe faz.

"Sinto-me numa prisão"

"Sinto-me numa prisão nesta casa, aqui num primeiro andar [é uma vivenda de dois pisos], sem nada para fazer. No meu lugar, não descansava, tinha sempre coisas para fazer, de manhã à noite, para ter as minhas coisas. Não me faltava nadinha, os filhos diziam para eu parar. Eu estar parada? Não é para mim." Agora a sua companhia é um labrador branco, o Max, de 2 anos, que cresceu tanto que ela não tem força para o levar a passear. Tem de estar preso. "Coitadinho, não faz mal a ninguém, só quer brincadeira, mas não o posso deixar à solta, na aldeia andava à vontade."

Alzira faz questão de levar a equipa do DN ao sítio onde tinha a casa e onde hoje se encontra um amontoado de escombros. Apesar de tudo, gosta de lá ir, mesmo que só de carro o consiga fazer. "Quando era mais nova ia a pé. Cortava caminho pelas terras." Sobre a tragédia sobre a qual agora se assinala o primeiro aniversário, conta tudo com detalhe.

"Ardeu tudo, só me consegui salvar a mim e nem sei como. As pessoas ficam admiradas com a minha reação naquele dia, com a minha calma. Também não sou pessoa de gritar. Só tive tempo de pegar na malita e fugir, sozinha. Tinha as minhas coisas, papéis e um dinheirito, num sítio que só era preciso chegar lá e pegar. Não consegui, se o fizesse não conseguia sair."

Pela encosta junto à casa, tinha a horta, as árvores de fruto, as oliveiras, os currais e ainda hoje Alzira aponta com o dedo para o local onde estava cada uma das divisões da casa, construída com o marido, falecido há 22 anos. Tem dois filhos, "um trabalha nas eólicas e está no estrangeiro, o outro é bombeiro, viu um colega morrer, não é fácil". E sublinha: "Ouvi falar mal dos bombeiros, mas, mesmo que eles quisessem travar o fogo na minha casa, não tinham meios, era chamas pelo chão, pelo ar, por todo o lado, como se estivesse a nevar chamas, a nevar muito forte."

No dia, pouco passava das 14.30 - estava a dar a novela na RTP, O Sábio -, quando ouvi um estrondo, depois ficou escuro, depois apareceu o fumo. "Andei a tarde inteira a espalhar água em volta da casa, achei que se continuasse a ia salvar a casa, mas a partir das 18.00 percebi que já não havia hipótese, tive de fugir."

A casa de Alzira está em ruínas, tal como quando ela e o marido a compraram em 1974. Sempre que passa por Rapos vai com a esperança de encontrar trabalho iniciado, mas nada. Apenas demoliram o resto da habitação, que ameaçava ruir. "Só sei que é uma empresa de Pombal que a vai reconstruir. Dizem que já não demora muito, que está pronta até ao Natal. Diziam a mesma coisa no ano passado, vamos ver!"

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