Venho juntar-me a todos aqueles que, do alto do seu complexo de superioridade moral e civilizacional e do seu humanismo abstrato e seletivo, decretam que todos aqueles que procuram entender a questão ucraniana sem maniqueísmos, tentando identificar os fatores e apontar os diferentes tipos (e graus) de responsabilidade dos vários atores envolvidos na referida questão - que não começou no dia 24 de fevereiro de 2022 - sofrem de um irredutível pecado mortal: o "antiamericanismo burro"..Recorrerei, para isso, a um artigo do antigo secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, datado de 5 de março de 2014, sob o título "Para resolver a crise na Ucrânia, comece pelo fim". Diz ele, numa espécie de posicionamento prévio: "Com demasiada frequência, a questão ucraniana é apresentada como um confronto: se a Ucrânia se junta ao Oriente ou ao Ocidente. Mas para que a Ucrânia sobreviva e prospere, não deve ser o posto avançado de nenhum dos lados contra o outro - deve funcionar como uma ponte entre eles.".Para Kissinger, "a Rússia deve aceitar que tentar forçar a Ucrânia a um status de satélite e, assim, mover as fronteiras da Rússia novamente, condenaria Moscovo a repetir a sua história de ciclos autorrealizáveis de pressões recíprocas com a Europa e os Estados Unidos"..Mas, acrescenta ele, "o Ocidente deve entender que, para a Rússia, a Ucrânia nunca pode ser um país estrangeiro. A história russa começou no que foi chamado Kievan-Rus. A religião russa espalhou-se a partir daí". Dirigindo-se em particular à União Europa, escreveu ele, no artigo que reproduzimos parcialmente na presente coluna, que a mesma "deve reconhecer que a sua lentidão burocrática e a subordinação do elemento estratégico à política interna [forma diplomática de dizer "incapacidade estratégica"] na negociação da relação da Ucrânia com a Europa contribuíram para transformar uma negociação em crise"..Kissinger considera que os ucranianos são, obviamente, o ator decisivo, para sair do atual imbróglio. Depois de lembrar a "história complexa" e a "composição poliglota" da Ucrânia, ele alerta que "qualquer tentativa de uma ala da Ucrânia de dominar a outra - como tem sido o padrão - levaria eventualmente à guerra civil ou ao colapso"..Mais grave ainda, segundo o ex-secretário de Estado norte-americano: "Tratar a Ucrânia como parte de um confronto Leste-Oeste arruinaria por décadas qualquer perspetiva de trazer a Rússia e o Ocidente - especialmente Rússia e Europa - para um sistema internacional cooperativo.".Para Henry Kissinger, "a raiz dos problemas [da Ucrânia] está nos esforços dos políticos ucranianos para impor a sua vontade a partes recalcitrantes do país, primeiro por uma fação, depois pela outra". Ele atribui isso à "juventude" do país, que é independente há apenas 31 anos. "Os seus líderes não aprenderam a arte da concessão, muito menos a perspetiva histórica", escreveu ele..No artigo em causa, Kissinger enuncia os seguintes princípios para compatibilizar os valores e interesses de segurança de todos os lados: direito da Ucrânia de escolher as suas associações económicas e políticas, sem aderir à NATO [sublinhado meu], ou seja, uma postura comparável à da Finlândia; livre escolha pelos ucranianos do seu governo e adoção de uma política de reconciliação entre as várias partes do país; não aceitação da anexação da Crimeia, mas reforço da sua autonomia, baseada em eleições realizadas com a presença de observadores internacionais (depois da guerra, isso ainda será possível?)..Ooopss! Só agora me dei conta: será que o kota Kissinger também sofre de "antiamericanismo burro"?. Escritor e jornalista angolano, diretor da revista África 21