Sobre médicos e loucos
O que têm em comum Thomas Edison, Marconi, Júlio Verne, Churchill, Teddy Roosevelt, Reagan, Tom Wolfe ou Buzz Aldrin?
Todos publicaram na Popular Mechanics, revista norte-americana fundada em 1902 que se tornou o embrião do movimento DIY, sigla de "do it yourself" ("faça você mesmo").
Depois da PopMech, cujo subtítulo era "escrita de maneira a que você entenda", centenas de outras publicações mundo afora nasceram e cresceram com o objetivo de ensinar a construir, a modificar ou a reformar os armários do quarto, a canalização da cozinha, a instalação elétrica da garagem, o motor do automóvel.
A PopMech, com orgulhosos 118 anos, ainda existe mas sofre, como todas as publicações, com o advento de outras plataformas: hoje, para mudar a maçaneta de uma porta ou consertar a torneira do duche há centenas de vídeos no Youtube ainda mais rápidos e mais visuais.
Hoje, qualquer dono de i-phone pode sentir-se um Cartier-Bresson, um Man-Ray, uma Annie Leibovitz, um Sebastião Salgado apertando uma tecla.
Durante a pandemia, por exemplo, o número de padeiros e barbeiros amadores cresceu exponencialmente, todos orgulhosíssimos de si, mesmo que faltasse uns gramas de fermento ao papo-seco ou uns milímetros ao alinhamento da franja.
Os benefícios do DIY, do auto-didatismo, da ampliação do conhecimento, são indiscutíveis: sabendo um pouco de cada um dos ofícios, o cidadão fica mais independente, pode personalizar os próprios objetos ou outras realizações e, mais importante, ainda poupa o dinheiro gasto com um especialista.
Mas os riscos dessa cultura também são claros e graves: diminui a qualidade do produto, impede que profissionais que se especializaram numa dada atividade, às vezes por uma vida inteira, ganhem a vida, trava a roda da economia, pode gerar pequenos e grandes desastres.
Dois advogados à conversa nestes dias chegaram à conclusão que, com tanta informação recebida por Whatsapp, não iam gastar mais um tostão com os media tradicionais. Os mesmos advogados revoltaram-se ao ouvir dois jornalistas dizer que com tanta informação jurídica à distância de uma googlada o oneroso trabalho dos profissionais do direito se tornou supérfluo.
"O Alienista", romance de Machado de Assis em que um psiquiatra, Simão Bacamarte, decide internar toda a população de uma cidade porque ninguém, segundo ele, era "perfeitamente normal" mas acaba, o próprio, no manicómio precisamente por ser o único "perfeitamente normal", é a mais fiel tradução literária do ditado "de médico e de louco, todos temos um pouco".
Essa réstia de terapeuta no íntimo de cada um, que sempre foi tão útil para distinguir uma leve azia de uma enfermidade terrível ou uma gripe suave de uma internação urgente, entretanto, com a tal a cultura do DIY, tornou-se um perigo real. Como o jornalista que advoga a seu favor via Google ou o advogado que se auto-noticia, corre-se o risco de cidadãos comuns virarem otorrinolaringologistas, psicólogos, cardiologistas ou, na conjuntura atual, epidemiologistas de bancada.
A cultura DIY, em última análise, fez do mundo uma reunião de amadores que dispensam a sabedoria adquirida ao longo de anos, na escola e na prática, por um carpinteiro, por um cabeleireiro, por um fotógrafo ou por um cirurgião, graças à fé cega na sua curiosidade pessoal.
É a cultura DIY, ao desdenhar do conhecimento, sobretudo o científico, que serve de base base ao anti-intelectualismo, um dos pilares dos novos populismos norte-americano e brasileiro.
É a cultura DIY, afinal, que permite que, depois de dois ministros especialistas na área serem demitidos, esteja há dois meses um paraquedista (literalmente) a gerir o ministério da saúde do Brasil, em plena pandemia.
É a cultura DIY que deixa que um boçal ex-capitão do exército e deprimente ex-deputado federal receite ao povo incauto um medicamento sem comprovação científica.
Logo ele que, garantiram psiquiatras ouvidos pelo DN, tem muito mais de louco do que de médico.
em São Paulo