Sobre jogo falado
Todos os anos, em Junho, um cardume põe-se a subir o Índico pela costa da África do Sul. É o maior organismo vivo, cinco mil milhões de sardinhas fazem uma coluna de 13 quilómetros de comprimento e dois de largura. Mas, mais do que o tamanho, impressiona o ballet que as câmaras submarinas captam, sem uma sardinha chocar com outra, o vogar sincronizado daquela massa que avança como um fluido gasoso, de uma elegância imparável. Comparado, só outro ser vivo, bem mais pequeno: 1,69 m. Messi. A minha admiração não é como ele finta três ou quatro, mas como não tropeça um pé no outro.Nunca percebi como o futebol, fornecendo-nos destas maravilhas físicas, convive com palavras tão pobres como uma resposta de Luís Filipe Vieira ou os títulos do Record na época do defeso. Bem sei que o futebol proporcionou textos de antologia - do uruguaio Eduardo Galeano ao brasileiro Nelson Rodrigues, passando pelo anglo-espanhol John Carlin - mas esses são de autores que provavelmente nunca calçaram chuteiras imortais. Vendo como Zidane recebia uma bola e a amansava ou como Messi se arma (e nos desarma) em cardume, seria de supor que nos balneários se falasse como Sophia de Mello Breyner olhava Cacela Velha. Está bem, o suor de noventa minutos não indo com poesia, dou outro exemplo: surpreende que os homens da bola não falem com a linguagem tersa de Camilo. Como eu gostaria de ver Jorge Jesus dar a táctica tal como Camilo Castelo Branco, em No Bom Jesus do Monte: «Os tiros de ódio podem ferir; mas assanham os brios, e dão azo à vitória; porém os tiros do escárnio matam sempre.» Camilo parece estar, naquela frase, a criticar o estilo arrebatado de Mourinho e a aplaudir o tiki-taka de Guardiola. Mas o que trato aqui não é de futebol como jogo jogado, mas do futebol falado. Da pobreza com que é falado. E não refiro a semântica ou a gramática, falo simplesmente de linguagem, a arte de criar símbolos. E vou dar dois exemplos para me desdizer, sobre gente de futebol que soube dizer o que havia para dizer. Como são tão raros, eles acabam por me dar razão.O primeiro exemplo é de Bobby Robson, o treinador que passou por cá e deixou saudades, mas antes treinou a selecção inglesa no Mundial de 1986, no México. Uma tarde, no estádio Azteca, Inglaterra-Argentina, de facto Falklands-Malvinas, guerra que acabava de acabar. Na verdade, acabou por ser o dia de São Maradona. Aos 51 minutos, a bola voou para a grande área inglesa e foi atacada por dois saltos: o do gordo e minorca argentino e o do alto guarda-redes Peter Shilton. Quis o árbitro tunisino que fosse golo, quando todos viram que, não sendo andebol, era impossível. Maradona diria no fim do jogo: «Foi a mão de Deus.» Quatro minutos depois, Maradona, no seu meio-campo, pegou na bola e foi em 60 metros, 10 segundos e cinco adversários, por ali fora. O escritor Martin Amis narrou assim: «Uma lânguida, erótica epifania.» A FIFA chamou-lhe o golo do século. Na conferência de imprensa, Robson, sobre o primeiro golo: «A mão de um canalha. Deus não tem nada a ver com isso.» E quando os jornalistas ingleses tentaram atiçar-lhe a indignação sobre esse primeiro golo, Robson sentenciou: «Mas o segundo valeu por dois. Um sacana de um milagre.» Como segundo exemplo do que é falar, Alex Ferguson, treinador escocês do Manchester United. No sábado passado, ele apostava coroar uma vida, ganhando pela terceira vez a Champions, o que só sucedera a um outro treinador (Bob Pasley, do rival Liverpool). Expectativas, pois, enormes e definitivas. O jogo foi contra o Barcelona e no final Ferguson disse esta frase: «Nunca ninguém me deu uma tareia como esta.» Tão simples, tão simbólico, tão exacto sobre aquilo que vi.