Sobre a visão, o abutre e o unicórnio

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O senhor Pessoa sentou-se, levantou-se, sentou-se de novo.

Um planeta não tem ossos devido à falta de cálcio na atmosfera. As enormes quantidades de cálcio necessárias para ossificar um país justificam a moleza de algumas fronteiras e a facilidade com que muitas zonas do mundo são invadidas. Os mapas não são definitivos devido à falta de cálcio na atmosfera.

As acrobacias do corpo são perigosas para os olhos de quem as vê. Certos corpos de acrobatas um certo dia dobraram-se de tal forma que os olhos dos espectadores ainda não recuperaram; ainda estão tortos. Problemas de visão não são problemas de visão, são problemas no que é visto. Quem vê mal não vê mal, quem vê mal viu algo mau. Não há míopes, a realidade ao longe é que está pouco nítida.

O abutre é um animal horrível. O abutre é um animal horrível porque come carne. Quanto ao homem, o homem é um animal maravilhoso, apesar de comer carne. E o homem é um animal maravilhoso, apesar de comer carne, porque tem medo dos abutres que são animais horríveis (porque comem carne). Se fôssemos abutres o homem seria para nós um animal horrível.

O algarismo 8 é os óculos da matemática. O algarismo 8 não é portanto um algarismo, é um problema nos olhos. Se a matemática visse bem não precisava do algarismo 8. E tal como fazem algumas crianças, a matemática passaria directamente do 7 para o 9. Porém o 9 também envolve questões de oftalmologia. O 9 é a luneta de um olho. Se não existisse aristocracia a matemática teria prescindido do algarismo 9.

O unicórnio não é um bicórnio distraído como quem traz para a rua apenas uma bengala em vez das duas que o médico recomenda. No entanto, o unicórnio não existe; e não existir é provavelmente a maior distracção possível de uma coisa. Se o unicórnio se tivesse lembrado de existir provavelmente também se teria lembrado de trazer os dois cornos e nesse momento deixava novamente de existir enquanto unicórnio, passando a existir unicamente como bicórnio. Estamos perante uma rua sem saída; ou talvez pior: uma rua sem duas saídas.

O martelo demonstra a sua amizade em relação ao prego batendo-lhe com força na cabeça. A amizade é tornar a outra coisa útil, pois só assim essa coisa se reproduzirá. Uma fábrica que produza coisas inúteis não abre ao segundo dia. Se não existissem martelos os pregos já seriam objectos em perigo de extinção. É, pois, com alegria que o prego vê o martelo a bater-lhe com força na cabeça.

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