Sobre a política da memória nacional

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Foi publicado na mais recente edição de fim de semana do Diário de Notícias um artigo de Shlomo Ben-Ami, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, que critica a atitude das autoridades polacas em relação à alteração da Lei sobre o Instituto da Memória Nacional, que, entre outros, prevê sanções por corresponsabilizar o Estado e a nação polaca pelo Holocausto. Entretanto, surgiram muitos mal-entendidos em torno desta alteração. Por conseguinte, queria pedir um momento da vossa atenção, e que lessem cuidadosamente o artigo 55 da nova lei do Instituto da Memória Nacional, que é fundamental nesta questão:

"1. Quem atribuir, pública e falsamente, à nação polaca ou ao Estado polaco, responsabilidade ou corresponsabilidade por crimes nazis cometidos pelo Terceiro Reich alemão (...) ou por outros crimes que constituam crimes contra a paz, crimes contra a humanidade ou crimes de guerra, ou de qualquer outra forma diminuir marcadamente a responsabilidade dos verdadeiros perpetradores desses crimes, é punido com uma multa ou uma pena privativa da liberdade até três anos. A sentença é divulgada ao público. (...)

3. Age sem culpa o agente do delito referido na al. 1 e al. 2 se atuar no âmbito da atividade artística ou científica."

Queiram por favor ponderar se essas leis são tão diferentes das regulações de outros países que proíbem as mentiras históricas. É também preciso salientar que o presidente Andrzej Duda, ao assinar esta lei, e tendo dúvidas sobre algumas das expressões usadas na mesma, mandou-a para análise do Tribunal Constitucional polaco. Este já designou os juízes que vão analisar a alteração da lei. O ministro da Justiça e procurador-geral Zbigniew Ziobro afirmou numa entrevista publicada recentemente que a decisão do tribunal será uma indicação para os procuradores no que diz respeito à aplicação da nova lei. O ministro Ziobro disse também que a alteração da lei "tem como objetivo a proteção do Estado e da nação polacos, como um todo, das acusações falsas de participação em crimes alemães, e não servir para apagar a responsabilidade de pessoas ou grupos isolados. Não haverá punição para as testemunhas da história, cientistas ou jornalistas por referirem os factos dolorosos da nossa história".

São mencionados no dito artigo de Ben-Ami alguns países europeus, sendo considerados como corresponsáveis pelo Holocausto. Há uma diferença importante entre esses países e a Polónia, no que diz respeito à responsabilidade do país ou da nação. Nesses países, funcionavam, de formas diferentes, as autoridades nacionais ou regionais. Desde setembro de 1939 até ao final da guerra em 1945, a Polónia não tinha um governo nacional, e toda a administração estava nas mãos do ocupante alemão. Além disso, durante a guerra e a ocupação nazi a Polónia perdeu cerca de seis milhões de cidadãos, sendo cerca de metade de origem judaica. Foi uma perda de 22% da população; em comparação, se olhássemos para as perdas na Europa Ocidental, em nenhum dos casos esse número ultrapassa 2%. Pensemos ainda no terror que durante mais de cinco anos dominava a Polónia, execuções públicas nas ruas, execuções em casas das pessoas, inclusive por cada tentativa de ajudar os judeus. O grande Exército Polaco Clandestino (Armia Krajowa) ordenou e executava as penas de morte no caso das pessoas que assassinavam ou denunciavam judeus.

Nós não negamos os casos dos crimes cometidos pelos polacos contra os cidadãos polacos da origem judaica durante a Segunda Guerra Mundial, e que foram cometidos por diversos motivos. Mas se o antissemitismo era tão comum na Polónia, como alguns acreditam, como explicar o facto de antes da invasão alemã viverem na Polónia mais de três milhões de judeus, quase metade da população mundial? Não vou aprofundar a questão da relação entre a dimensão da diáspora e as tensões étnicas (em várias cidades a comunidade judaica, que era pouco integrada, constituía a metade da população), e de instigação dessas tensões em alguns dos territórios (inclusive em Jedwabne) pela ocupação soviética, anterior à ocupação alemã. Em caso nenhum essas circunstâncias devem relativizar esses crimes, quero apenas chamar atenção para o facto de a trágica realidade da guerra na Polónia ser mais complexa do que o modo como é habitualmente apresentada. É tão raro, ao falar do crime de Jedwabne, que se mencione o papel da Einsatzgruppe alemã, cujo objetivo foi o extermínio de judeus fora dos campos de concentração naqueles territórios.

A Polónia não evita a discussão sobre as páginas difíceis da sua história. Aliás, quem conduziu, entre 2000 e 2004, a investigação mais detalhada sobre o crime de Jedwabne foi o Instituto da Memória Nacional polaco. O governo polaco está também aberto a debate sobre a nova lei. Os governos da Polónia e de Israel concordaram que vão iniciar o diálogo jurídico e histórico. O mesmo começa nesta semana com uma viagem a Telavive da comitiva polaca com o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros Bartosz Cichocki e a primeira reunião com a parte israelita da equipa. É importante para nós que haja um debate calmo e substancial, e esperamos que assim seja.

* Embaixador da República da Polónia em Portugal

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