Sobre a geoestratégia do rectângulo

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O jornal El País, ontem, narrou o começo da Liga de futebol espanhol com os tons épicos que, há exactamente 70 anos, os jornais utilizaram na entrada das tropas alemãs na Polónia. Neste último caso, logo as declarações de guerra da Inglaterra e de França confirmariam que estávamos perante um acontecimento histórico de dimensão mundial. Mas ainda a tinta de El País não havia secado e já se deitava água na fervura do entusiasmo futebolístico: o Real Madrid, actor principal da anunciada Nova Renascença, suava, em casa, para conter o modesto Deportivo galego.

Não se veja no parágrafo anterior ironia pelo exagero castelhano. Muito pelo contrário, há pura inveja. O futebol é para ser contado com exagero (e não é que possa ser assim, deve). Logo que, claro, duas condições estejam preenchidas: 1) os intervenientes sejam mesmo deuses e 2) o contador, talentoso. Não havendo disso, se é para contar histórias do boçal que vai para o aeroporto insultar pernetas (isto é, faltando a primeira condição), ou se é para contar com a linguagem hermética do "invólucro mensagem" que a Direcção-Geral dos Impostos nos manda por esta época (isto é, faltando a segunda condição), o melhor é fechar a loja.

Ontem, repito-o, El País tinha a sua bem aberta: "Comienza el espectáculo. Bienvenidos ao show más grande del mundo". E ainda bem. Porque o jornal anunciava um momento histórico cujo precedente - a passagem da liderança mundial do Império Britânico para a América - precisou de um século. Agora, em poucas semanas, o mesmo movimento foi desaguar a Espanha: "O centro de gravidade do futebol mundial passou de Inglaterra para Espanha", escreveu El País. "Um Xerez-Real Madrid ou um Tenerife-Barcelona vão proporcionar um interesse inimaginável ainda há só três meses em Kuala Lumpur, Seattle e Joanesburgo", insistiu o jornal, como que adivinhando que eu, ontem, me empolgaria porque um tal Pablo Álvarez, do tal Deportivo, entrou de pata alçada contra "los ángeles blancos".

Los Ángeles Blancos é um livro sobre o Real Madrid escrito por John Carlin. Que é também o autor da reportagem de El País, ontem. Que um John Carlin, londrino, antigo estudante de Literatura Inglesa em Oxford, se derreta pelo futebol espanhol explica-se pela inconstância dos homens quando soprados pelos ventos da História: também o príncipe português D. Pedro deu o grito de Ipiranga. Sem o remorso de antigas lealdades, John Carlin (Prémio Ortega y Gasset, de jornalismo), ontem, estava encantado por Florentino Pérez ter desfalcado o campeonato da sua Velha Albion, indo buscar Cristiano Ronaldo (Manchester United) e Xabi Alonso (Liverpool): "Pérez foi o Lenine ou o George Washington da Revolução do Verão." Eu gosto desta grandeza emprestada ao futebol. Tomara tê-la por cá.

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