Desde o início da história humana, quando os fenícios ousaram navegar em mar aberto, milhares e milhares de seres humanos haviam alcançado a profundidade a que estávamos agora suspensos e viajado para níveis inferiores. Mas todos eles estavam mortos, vítimas afogadas da guerra, tempestades ou outros atos de Deus". As palavras fluem num artigo de 1 de junho de 1931 publicado nas páginas da revista norte-americana National Geographic. Noventa anos volvidos, a peça pode ser lida online a partir da pesquisa dos termos: "Bolted inside a steel sphere"..Entre as fotos que ilustram a narrativa, assome o rosto magro e tisnado de um mergulhador de olhar fixo sob a proteção de uma escotilha. O vidro, com perto de 3 cm de grossura, delimitava a fronteira entre o homem e uma pressão subaquática superlativa. Cada 10 cm2 da esfera de aço que descia nas águas atlânticas profundas ao largo das Bermudas, submetiam-se a uma pressão igual a 300 kg. O mergulhador era também o autor da já referida reportagem. Intitulou-a "Viagem de Ida e Volta ao Baú de Davy Jones" (no original, "A Round Trip to Davy Jones"s Locker"), numa alusão ao pirata do século XVIII, misto de história e lenda, capaz de atrair tempestades e outros perigos sobre navios e marinheiros. Quanto ao baú, é objeto alegórico do fundo dos oceanos, território de marinheiros afogados, de morte, mas também de esperança..Ao fundo mítico e desconhecido do oceano, desciam William Beebe e o engenheiro Otis Barton. A 6 de junho de 1930, a dupla de exploradores norte-americanos baixava aos 400 metros ao largo da ilha de Nonsuch..Nascido em Nova Iorque em 1877, Charles William Beebe colecionava desde a juventude competências enquanto naturalista, ornitólogo, biólogo marinho e entomologista, também explorador e autor. Beebe, falecido em 1962, preencheu ao longo de 84 anos um dos compêndios mais ricos da ciência americana, numa sucessão de marcos que incluem o primeiro mergulho em batisfera, uma viagem em redor do mundo na catalogação de espécies exóticas de faisões e a descoberta, com décadas de antecedência, dos ancestrais alados das atuais aves (ver caixa), a instalação de uma estação de pesquisa tropical em Trinidad e Tobago, no Mar das Caraíbas e dezenas de expedições às américas central e do sul..A foto de 6 de junho de 1930 que ilustra o rosto de Beebe não foi captada sob as águas, antes no convés da embarcação que descia e subia o cabo de aço que sustentava a batisfera. Os meios técnicos da época não permitiam fotografia a grande profundidade. A esfera de Beebe e de Barton perscrutava com o olho luminoso de um holofote o azul denso das águas. As comunicações com a superfície titubeavam através de um cabo telefónico, subindo ao encontro dos ouvidos de Gloria Hollister, exploradora e conservacionista. Beebe, cuja vida profissional como ornitólogo no Zoológico de Nova Iorque findara um curto percurso académico, descrevia com vividez o vazio que mantinha em suspensão a esfera: "era de um azul profundo indefinível, muito diferente de tudo o que já vi no mundo superior". E muito havia visto o homem que em 1910 protagonizara com a sua primeira mulher, a novelista e escritora de viagens Blair Niles, uma jornada de 18 meses de circunavegação do planeta..Longe dos abismos marinhos e dos seus seres fantasmagóricos, fora a exuberante multiplicidade de faisões, nos seus diferentes ecossistemas, o mote para uma viagem de mais de 40 mil quilómetros da expedição Beebe/Blair. Périplo financiado pelo filantropo e empresário Anthony Kuser que se bateu contra a relutância do Zoológico de Nova Iorque em ceder à exploração um dos seus melhores ornitólogos. Superada a contrariedade, o navio britânico RMS Lusitânia acolheu a primeira etapa da expedição, nas águas atlânticas, entre Nova Iorque e Londres. Cinco anos depois, em 1915, o colosso de 40 mil toneladas soçobraria aos torpedos germânicos no decorrer da Primeira Guerra Mundial. Na tragédia, a morte colheu mais de 1000 vidas..Sorte diferente da que granjeou a bem-sucedida expedição de William Beebe no seu percurso, entre outros países, pelo Egipto, Sri Lanka (então Ceilão), Índia, Indonésia, Singapura, Bornéu, China, Japão e a juntar novos exemplares ao catálogo de espécies nunca avistadas por olhos europeus ou americanos. Assim o foi com o Faisão Monal dos Himalaias, espécie esquiva, encontrada a 2400 metros de altitude, hoje reconhecida oficialmente como a ave nacional do Nepal..A Grande Guerra obstaria, por quatro anos, à publicação da obra em quatro volumes resultante da expedição de Beebe e Blair, publicada entre 1918 e 1922 e que trazia para o debate científico um novo modelo evolutivo sobre a ancestralidade dos faisões. Debate a que William não se escusaria uma década mais tarde, ao descrever os habitantes dos territórios abissais, muitos deles bioluminescentes. William Beebe descreve-nos no artigo já citado o seu desejo de continuar a descer rumo "à boca negra do Inferno" que se abria sob a batisfera..Nos anos seguintes, até 1934, o explorador atingiria os quase 1000 metros de profundidade, feito só ultrapassado após a Segunda Guerra Mundial, em 1949, quando Barton desceu a mais de 1200 metros sob as ondas do Oceano Pacífico. Protegia-o a couraça de aço de um bentoscópio, parente da batisfera. Para a história, Beebe ficaria como o primeiro biólogo a observar animais de grande profundidade no seu habitat. O cientista que legou mais de 800 artigos e 21 livros, não quis ver o seu nome ligado à produção cinematográfica de 1938, Titans of the Deep, filme de terror mascarado de pseudodocumentário. No abismo de William Beebe não cabiam monstros..Em 1915, William Beebe formulou uma hipótese a propósito da evolução remota das aves. A hipótese do Tetrapteryx, defendida pelo cientista norte-americano, sustentava que as espécies antepassadas das aves, teriam passado por um estágio de quatro asas planadoras, um par nos membros dianteiros, outro nos traseiros..Uma hipótese pouco aceite nas décadas seguintes, mas defendida por Beebe até aos anos de 1940. Em 2003, a descoberta na China do fóssil do Microraptor gui, reacendeu o debate. O pequeno dinossauro carnívoro possuía vestígios de penas de voo nos membros dianteiros e traseiros..dnot@dn.pt