Só visto: estatísticas na gaveta
Paulo Núncio recorreu ao único argumento aparentemente disponível para justificar a não publicação da estatística sobre transferências para offshores: ele agiu assim para não beneficiar o infrator. A linguagem usada ontem no Parlamento pelo antigo secretário de Estado é futebolística, um setor de má fama fiscal, além de que a justificação usada não é explícita o suficiente para se tornar compreensível. Pelo contrário, é deliberadamente ambígua e confusa, baralhada, como quase tudo neste processo.
Arrisco então uma interpretação exótica: Paulo Núncio não aprovou a publicação dos números porque se o tivesse feito estaria a incentivar outros capitalistas, maiores ou menores, mais ou menos ricos e afamados, a transferir o seu dinheiro para offshores - prática legal - numa altura financeiramente sensível do país. Como todos nos lembramos, nesses tempos aziagos e não tão distantes, os bancos andavam ainda mais sobre brasas.
Ou seja, se se tivesse sabido que de repente havia tanto dinheiro a sair de Portugal, o equivalente a 6% do produto interno bruto, a publicação de uma coisa tão banal como uma estatística da Administração Fiscal poderia servir como tiro de partida para que o dinheiro fugisse ainda mais depressa porta fora, rumo a pastos mais verdejantes e seguros - acrescento eu: opacos também.
Pessoalmente, esta teoria não me convence. Suponho mesmo que a explicação avançada por Paulo Núncio seja apenas a única com um mínimo de hipótese de sair menos mal na fotografia. O antigo governante estaria assim a defender o interesse público e não a cuidar dos interesses privados de alguém; na verdade esta, sim, a suspeita tenebrosa, embora ainda não verbalizada, que paira sobre este diabólico assunto.
Para que não haja dúvidas, esclareço já que não acredito nesta tese - lançar suspeitas sobre políticos é uma modalidade com honras olímpicas em Portugal. Batemos todos os recordes neste desporto, mas é um abuso que nos sai e continuará a sair muito caro, tantas são as reputações (experiência, saber, disponibilidade para a causa pública - sim, isso existe) queimadas na fogueira dos interesses. Pelo que sei até agora, nada me leva a suspeitar que o antigo secretário de Estado tenha pretendido proteger alguém em concreto, evitando a sua exposição.
O problema é a fragilidade do nosso sistema. Se o diretor-geral dos impostos português tem de pedir a autorização expressa ao Ministério das Finanças para publicar estatísticas - anónimas por definição e concetualmente benignas para a avaliação da economia -, então estamos mesmo ainda a viver a época das trevas informativas e democráticas. Eu sei que a independência excessiva do fisco face ao poder eleito pelo povo pode ter resultados sombrios. A tutela política é imprescindível. É dela que resulta o impulso legítimo a seguir e também a atribuição dos instrumentos humanos e técnicos para levar o trabalho a bom porto. É também a esta tutela que primeiramente devem ser exigidas explicações se alguma coisa correr mal, se houver abusos, falhas graves ou incúria.
Mas outra coisa é ter de haver uma autorização para publicar um grupo de estatísticas. Ora bem, isto não é de todo tolerável, embora informação seja poder. Significa remeter para o secretário de Estado, seja ele quem for, ou para um ministro, seja ele quem for, um grau de poder excessivo que afeta irremediavelmente a transparência do Estado e diminui o papel do diretor-geral dos impostos. É bom que se saiba que há países onde isso não acontece. Por exemplo, em Espanha ou na Austrália. Nações onde o grau de autonomia do fisco é maior e daí não surgem preocupantes ameaças democráticas.
Paulo Núncio calou quatro anos de estatística com um simples "visto" - a magnífica resposta burocrática que deu a Azevedo Pereira, o então diretor-geral do fisco, quando este lhe pediu para libertar os números. O "visto" é a língua de trapo da administração pública para dizer: homem, deixe-se mas é estar quietinho e não se mexa.
Porque o fez Núncio? Porque arriscou tanto? Porque errou na análise durante tanto tempo? Não quero especular. Não seria honesto, não é aceitável, precisamos de mais respostas, mas o mal está feito, mesmo que em termos financeiros este tema não valha provavelmente quase nada: em 2015, dos 8,8 mil milhões de euros que viajaram para offshores, apenas foi detetado um milhão de euros de impostos em falta. Ainda assim, como ontem disse o Presidente da República, os números são para ser conhecidos, ponto final.
P.S. Uma última frase para Azevedo Pereira. Ele podia ter reclamado, podia ter-se batido mais contra a decisão de Paulo Núncio, podia ter tornado público o assunto, podia não ter cumprido as ordens e saído, podia ter-se demitido; embora eu hoje seja forçado a reconhecer que outros temas mais relevantes o levaram naquela fase a choques mais duros com o antigo secretário de Estado e aí ele revelou a força que não impôs nesta circunstância.