Só uma boa canção pode vencer uma Eurovisão geopolítica

Num concurso em que relações geográficas e políticas fazem parte do jogo, críticos e jurados não duvidam: a chave para que Portugal se destaque será apenas uma grande canção.
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Na última década do Festival da Eurovisão, apenas quatro edições não foram vencidas por países da Europa de Leste. Desde que as semifinais foram instituídas na competição, há 13 anos, Portugal só por três vezes conseguiu lugar na final, a última em 2010. Num concurso com forte componente geopolítica, em que territórios vizinhos e aliados têm por hábito votar entre si, de que forma se pode destacar o representante do nosso país em Kiev, capital da Ucrânia, que acolhe a Eurovisão em maio? Uma grande canção é a resposta unânime.

"Uma boa canção será sempre a chave para Portugal cativar atenções", começa por explicar Nuno Galopim, crítico de música que ajudou a RTP a repensar este renovado Festival da Canção, com a primeira semifinal a decorrer hoje, uma segunda no dia 26 e a final no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 5 de março. Adianta ainda que "o mapa geopolítico europeu sempre atravessou a história da Eurovisão", exemplificando: "O que era a canção grega de 1976 senão um protesto face à ação militar turca sobre Chipre dois anos antes? Porque censurou a própria RAI a canção italiana de 1974, Si, de Gigliola Cinquetti, numa altura em que estava em campanha em Itália um referendo para a liberalização do divórcio civil? E a canção que fez a estreia da Bósnia e Herzegovina em 1993 não era mais do que uma chamada de atenção para a guerra que então assombrava o país." O jornalista, contudo, ressalva: "Podemos fazer uma leitura política de várias votações. Mas quando as canções falam mais alto, como sucedeu com as vitórias da Alemanha [2010] ou da Suécia [2012 e 2015], os resultados transcendem os efeitos de simpatias, conflitos, diásporas, amizades ou vizinhanças."

Júlio Isidro, que preside ao júri do Festival da Canção deste ano - o qual dividirá a percentagem de votos com o público nas semifinais -, afirma que a prioridade tem de estar assente na qualidade do tema representante. "Portugal não tem de fazer frente a grupos geopolíticos nem ao espetáculo de variedades em que se transformou a Eurovisão. A sua raiz não é o que está a ser hoje. Os países mais a leste, talvez por terem entrado mais tarde, têm um culto pelo festival que faz que aquilo seja sempre resolvido entre eles. Portugal tem de se apresentar com grande dignidade e uma canção de qualidade. Não é preciso mais nada. Ultimamente, nesses palcos, já tivemos leões, bicharada, de tudo. Eu quero é grandes canções", conta o apresentador de várias edições do festival na RTP.

Representante português na Eurovisão por três vezes, Tozé Brito quer que o foco do festival volte a estar centrado nos refrães. "Há arranjos, conivências, relações preferenciais. É natural que falem, que troquem votos. Não é utópico pensar numa futura Eurovisão despolitizada. Não sei é se haverá vontade", adianta o também jurado este ano. "Hoje pode vencer-se a Eurovisão com um tema banal e simples, mas que resultou em três minutos de atuação bem conseguidos visualmente. Mas se estamos a falar de um festival de canções, deveríamos, antes de mais, ouvir as mesmas e votar em função da sua qualidade", atira Brito.

Inês Meneses, um dos nove elementos do júri, garante que, neste concurso, "a confiança é muito importante e raramente a tivemos". "Interessa irmos convictos de que se está perante uma boa canção, e não mais uma moldada aos parâmetros da Eurovisão", explica a radialista, acrescentando que a Eurovisão deve ser "encarada como um divertimento para quem a segue. Dar-lhe mais importância que isso era um disparate", remata.

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