Só no Sul e no Centro, 453 médicos pediram à Ordem declarações para sair do país este ano 

2023 ainda não terminou e as Secções Regionais do Sul e do Centro da Ordem dos Médicos já receberam mais de 450 pedidos de declarações de good standing, exigidas aos profissionais que pretendem exercer fora de Portugal. Mais do que no ano de 2022. A Secção Norte não deu os dados da sua região. Mas para o bastonário os que são conhecidos refletem bem a "insatisfação" no SNS. E alerta para outro fenómeno: "Há médicos a abandonar a profissão."
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Nos últimos cinco anos quase dois mil médicos pediram à Ordem dos Médicos (OM) declarações de good standing, uma espécie de certificação e de qualificação profissional que lhes permite exercer fora de Portugal, frequentar internatos da especialidade, estágios ou pós-graduações. De acordo com os dados disponibilizados ao DN pelas Secções Regionais do Sul e do Centro da OM, de 2019 até ao início de dezembro de 2023 foram passadas 1888 declarações - este ano as duas secções somam 453 pedidos. A estes, o DN não consegue juntar os dados da Secção Regional do Norte, que entendeu que não tinha de os divulgar, respondendo que "os dados têm de ser divulgados pela Ordem nacional". Mas para o bastonário, Carlos Cortes, os dados existentes refletem "a insatisfação e a desmotivação" que se vive no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

É preciso salvaguardar, no entanto, que nem todas as declarações pedidas correspondem de facto ao número de médicos que saem para emigração, "alguns acabam por não concretizar esse objetivo", explicaram-nos. A verdade é que desde o período da troika, altura em que se iniciou o movimento de "fuga" de médicos para o estrangeiro, os números de pedidos de declarações de good standing não tinham voltado a ser tão elevados como este ano, até novembro.

Só no Sul, a região do país com mais falta de médicos, os dados revelam que em 2022 entraram na OM 426 pedidos de declarações e que em 2023, até ao início de dezembro, tinham sido recebidos 341 pedidos, podendo este número aumentar, já que faltam os dados deste mês. Em 2021, em plena pandemia, entraram 263 pedidos, em 2020, 302, e em 2019, 338.

Na região Centro os dados revelam que, no primeiro semestre de 2023, a OM passou 64 declarações e que de julho a novembro foram pedidas mais 48. No total, 112, mais do que em qualquer outro ano, já que em 2022 foram emitidas 59 declarações, em 2021, 46, em 2020, 34, e em 2019, 79.

Se juntarmos os 341 pedidos do Sul e os 112 do Centro, temos um total de 453 declarações pedidas por médicos, que tanto podem ser jovens como seniores. E se tivermos em conta os das duas regiões agora conhecidos, temos um total de 1888 declarações requeridas por médicos que manifestaram a sua intenção de querer sair do país, quer fosse para fazer o internato da especialidade, para exercer a atividade ou para fazer pós-graduações e melhorar a sua formação e currículo. Mesmo que só metade destes tenha concretizado o objetivo de sair, pode dizer-se que este ano o país perdeu mais de duas centenas de profissionais. Ou, se quisermos, quase um milhar em cinco anos.

O cenário é tanto mais preocupante quanto para o internato da especialidade, a iniciar a 1 de janeiro de 2024, ficaram por preencher 406 vagas, o que quer dizer que mais de quatro centenas de jovens médicos, que acabaram o curso na faculdade, não optaram pela formação específica. E das duas uma, ou começam a trabalhar como médicos indiferenciados e prestadores de serviços ou vão fazer a sua formação no privado ou no estrangeiro. Recorde-se que o ministério lançou 2242 vagas para o internato e foram preenchidas 1888, ainda assim uma percentagem de cerca de 80%. A especialidade de Medicina Interna ( um dos pilares das urgências) foi a que registou maior número de vagas em aberto, conseguindo preencher apenas 104 das 248 lançadas.

A falta de médicos no SNS é um problema que vinha a ser anunciado há algum tempo, sobretudo desde o período da troika em Portugal. Mas na altura, e como sublinha o bastonário da OM, ainda havia a esperança de que "os médicos que estavam a sair por causa da crise económica voltariam um dia, mas não é isso que está a acontecer". Pelo contrário, "as coisas têm vindo sempre a piorar, e cada vez mais. O que faz com que os médicos procurem outras alternativas, ou no estrangeiro ou no setor privado. Mas as saídas não acontecem só por uma questão remuneratória", sublinha. "Os médicos estão a sair do SNS porque estão insatisfeitos, porque não se sentem bem e porque veem o SNS a desmoronar-se de dia para dia", argumenta ainda. O bastonário diz mesmo: "Sou médico há mais de 35 anos e nunca vi tanta insatisfação e desmotivação no serviço público, porque as pessoas não veem uma luz ao fundo do túnel e acham difícil que seja encontrada uma solução."

O médico, que há oito meses assumiu o cargo de presidente da OM, após ter sido responsável pela Secção Regional do Centro, explica que "é muito diferente estar numa instituição em que não nos sentimos reconhecidos do que numa, por exemplo do setor privado, que está em crescimento, onde há projetos que, mesmo pequenos, fazem o médico sentir que está a contribuir para melhorar os cuidados, a sua formação e a sua carreira. O mesmo acontece quando vão para uma instituição de outro país, onde o seu trabalho é reconhecido". E dá como exemplo o que viveu no ano passado por esta altura, quando andava em campanha para as eleições que se vieram a realizar no início do ano. "Tive a oportunidade de perguntar a muitos médicos ainda na formação geral o que iriam escolher como especialidade e fiquei surpreendido com a quantidade que me referiu que queria ir para o estrangeiro. Isto deixou-me triste. Nem imagina, eram médicos que estavam a acabar a sua formação em Portugal mas que não iam fazer cá a sua especialidade porque a opção era trabalhar fora do país."

Questionado se tal teria também a ver com a forma como os internatos médicos (especialidades) estão organizados e estruturados no nosso país, o bastonário considera que não, defendendo que "a formação médica em Portugal pode ter algumas falhas, mas é boa e reconhecida. O que leva estes jovens a quererem sair do SNS e de Portugal assim que acabam o curso tem a ver com as condições de trabalho, com a forma como são tratados, com o papel que lhes é dado nas instituições e com o reconhecimento e respeito que recebem, que é o que não sentem cá. É isso que tem levado estes profissionais a saírem do SNS".

O DN sabe que a maioria dos médicos a pedir declarações de good standing está na faixa etária dos 30 aos 40 anos, embora também haja muitos dos 20 aos 30 anos e também alguns, embora menos, entre os 40 e os 50 anos, e até entre os 50 e os 60, como foi registado na Secção Regional do Centro. O Reino Unido é dos países que continua a ser mais procurado pelos médicos portugueses, mas há outros mercados, como a Alemanha, a Suíça, a Irlanda, os Estados Unidos da América, o Canadá, a Austrália e até a Arábia Saudita. França, Espanha e Itália ainda são procurados, mas já não satisfazem por completo as condições exigidas pelas novas gerações, que basicamente querem "mais qualidade de vida, tempo para a vida pessoal e, a nível profissional, pretendem cada vez mais fazer coincidir a prática clínica com a investigação, e para isso precisam de tempo", explica.

Segundo o bastonário, o movimento que se iniciou no verão em prol da recusa de mais horas extra dos que as 150 previstas na lei, e que tem causado constrangimentos nos serviços de urgência de todo o país, é também sinal do descontentamento da classe médica. Até porque muitos médicos, quando se iniciou este movimento, já tinham completado 400, 500 e até 600 horas extra. E é isto que os clínicos não querem, "não querem fazer tantas horas extraordinárias". Carlos Cortes destaca ao DN que a tutela, liderada pelo médico Manuel Pizarro, parece não ter entendido isto. "Nestes oito meses à frente da OM procurei ajudar o Ministério da Saúde a tornar o SNS mais atrativo para os médicos, fossem novos ou não, propondo soluções que lhe desse maior capacidade de retenção dos profissionais, mas a verdade é que este ministério fez zero nesse aspeto". Pelo contrário, reforça, "as soluções que nos apresentou mostram que olha para o SNS como se estivéssemos há 40 anos, mas acontece que não estamos. Há uma diferença muito grande. A ciência evolui, a medicina progrediu e a própria população mudou, tornou-se mais envelhecida, com novas doenças e mais exigente", sustenta. "Há 40 anos as pessoas ficavam mais em casa, hoje, quando têm um problema, e é natural que o façam, recorrem logo aos hospitais, e há uma pressão muito maior sobre os serviços e sobre os médicos. Isto reflete uma mudança na sociedade e o SNS não se adaptou a esta nova sociedade, e tem de o fazer." Até porque, conclui, "as novas gerações de médicos também têm um pensamento diferente das gerações de há 20, 30 ou 40 anos. E o que acontece é que os políticos continuam a não olhar para o SNS à luz deste novo pensamento. Para dizer a verdade, as soluções apresentadas pelos políticos são para um SNS, como disse, de há 40 anos, o que faz com que muitos médicos se sintam descrentes e saiam".

Pode haver mais médicos a procurar sair do país ou do SNS, mas também há mais profissionais inscritos na Ordem. Aliás, os dados da OM revelam que nunca houve tantos clínicos inscritos. Numa década, de 2012 para 2022, a OM passou de 44.497 médicos inscritos para 61.235, mais 16.738, mas no SNS apenas há registo de mais 6895 novos médicos, o que quer dizer que quase 10 mil ficaram de fora ou saíram. Os números do Ministério da Saúde têm dado conta de que o SNS integra 150 mil trabalhadores, dos quais cerca de 31 mil médicos, mais de 10 mil internos. O bastonário confirma que "os médicos internos são aqueles que estão a ser chamados para colmatar as faltas dos especialistas e é cada vez mais normal que quando acabam a formação acabem por sair, por não quererem ter a vida que tiveram até ali". Daí, justifica, "haver um conjunto de médicos que prefere não fazer uma especialização, para não ter de estar a trabalhar no SNS, em determinados hospitais ou serviços, em condições muitas vezes degradantes". Ou seja, "são médicos que optam por ser prestadores de serviço para terem a possibilidade de escolher a instituição onde querem trabalhar".

Mas o descontentamento seja no SNS seja na forma como se exerce a medicina está a levar a um outro fenómeno também preocupante e que pode prejudicar o SNS. "Há médicos a abandonar a profissão. São profissionais que tiraram uma especialidade e que deixam de ser médicos por não se sentirem completos no exercício da profissão", explica o bastonário, contando que "há colegas que não se sentem completos a trabalhar como trabalham, que sentem que a sua intervenção junto do doente já não é o que era, e acabam por se desmotivar de tal maneira que estão a sair da profissão. Alguns vão para áreas diferentes da da saúde, o que é bem demonstrativo da insatisfação e do descontentamento".

Não se vislumbra um futuro muito risonho para a saúde em Portugal. Talvez por não haver vontade política ou falta de perceção de que a sociedade mudou, os médicos acham que o SNS deveria igualmente mudar. Os médicos portugueses continuam a ser dos mais mal pagos da Europa, e Carlos Cortes assume que, no caso deste ministério, e apesar de ter um médico à sua frente, "nunca senti uma particular vontade em resolver os problemas do SNS, usando uma montra para a opinião pública, que se tenta conservar, de que está tudo bem. Quando ouço o ministro da Saúde dizer que está tudo a correr bem nas urgências, fico muito surpreendido, porque quem está no terreno sabe que está tudo a correr muito mal".

Os dois sindicatos médicos andaram 19 meses a negociar com a tutela. Só o Sindicato Independente dos Médicos chegou a acordo, aceitando um aumento que vai até aos 15%, metade do que estava a ser pedido inicialmente, cerca de 30%. A Federação Nacional dos Médicos continua a dizer que "é um mau acordo", esperando que quem vier a seguir retome as negociações.

anamafaldainacio@dn.pt

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