Só Niall Ferguson é capaz de simpatizar com Kissinger

Durante dez anos, o historiador Niall Ferguson investigou o mais famoso secretário de Estado dos EUA: Kissinger. Mil páginas que ainda eriçam os mais sensíveis.
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O primeiro volume da gigantesca biografia do historiador britânico Niall Ferguson sobre Henry Kissinger, provavelmente o mais famoso secretário de Estado norte-americano do século XX, aproxima-se das mil páginas. No entanto, não são suficientes para chegar à parte mais picante da carreira do governante, aquela em que se torna o braço direito do presidente Richard Nixon e o polémico e influente decisor da estratégia política a nível externo.

Sendo assim, o título desta primeira parte - Kissinger 1923-1968: O Idealista - significa, em linguagem de tribunal, que trata das alegações iniciais num julgamento que Ferguson iniciou há uma década e sem data marcada para se ouvirem as alegações finais. Decerto que a segunda parte deste O Idealista não será mais fácil de redigir, pelo contrário irá exigir uma isenção em muito superior à deste primeiro volume ou então a grande marcha investigatória de Niall Ferguson será saldada por uma opinião demasiado favorável ou, pelo menos demasiado compreensiva, sobre o papel que o secretário de Estado exerceu.

Algumas das recensões a este volume foram excecionais. Como se lê no próprio, a sucessora no cargo no tempo de George W. Bush, Condoleezza Rice, define o retrato como "leitura obrigatória para compreender a evolução de um dos mais importantes e consistentes arquitetos da política externa americana". Ou a opinião do Wall Street Journal: "Uma análise notável do pensamento estratégico". Ou a da Economist: "Quer se odeie ou se goste de Kissinger, é uma obra de enorme saber e rigor". E há também a opinião do professor de Harvard, Joseph S. Nye: "Fresca e imaginativa, esta biografia, resultante de uma investigação intensa, lê-se como um romance."

E é esta frescura e imaginação que se lê como uma narrativa romanceada que nem todos apreciaram na primeira parte da grande biografia. Entre as críticas que alguns lhe fizeram está a de que após a publicação do livro de Niall Ferguson, os leitores irão ficar com uma melhor opinião sobre Kissinger. Houve mesmo quem o acusasse de que o facto de o ex-secretário de Estado ainda estar vivo manietou o historiador e o tornou mais suave nas duras críticas sobre a personalidade que se esperavam após dez anos de pesquisa. Disso não há dúvida, basta a leitura de algumas partes críticas. Até porque não se sai desta primeira parte absolutamente convencido de que Kissinger era já o protótipo do maquiavelista e interessado apenas na acumulação de poder a todo o custo, que é a característica da sua personalidade mais generalizada. Que, aliás, é defendida com vários argumentos biográficos por Niall Ferguson.

Se esta é a parte mais fácil de explicar da sua vida, o que se passará quando chegar o momento em que Niall Ferguson tiver que ajuizar pelos valores históricos as decisões das alegadas atrocidades na Indochina, Argentina, Chile, Chipre e Timor Leste, entre outras, momento em que as palavras não poderão ser tão compreensivas. Daí que ao lerem-se tantas páginas sobre os tempos de formação de Henry Kissinger se sinta um odor de reabilitação da sua figura enquanto político. No entanto, uma má opinião sobre o livro pode ter alguma inconsistência devido ao facto de ainda estarmos demasiado perto dos acontecimentos que o biografado protagonizou. Pode-se até aceitar que Niall Ferguson se emancipou de Kissinger e que este é um livro antes do tempo? No entanto, sabe-se que o secretismo foi das grandes armas de Kissinger, o que envenena este raciocínio de desculpa.

A maior curiosidade para já é qual será o adjetivo com que caracterizará Kissinger no segundo volume da biografia. Desta vez foi o Idealista... referência algo questionável quando a maioria das opiniões sobre o governante eram ao contrário, o de ser bastante realista. Uma tese que Ferguson praticamente rejeita com argumentos de uma exaustiva investigação mas que os leitores desta biografia poderão justificar como o de algum respeitinho perante um biografado ainda vivo e que acedeu a facultar muito de material inédito existente nos seus arquivos pessoais. Apesar de muito interessante, esta é uma biografia autorizada.

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