Caminho Português da Costa. "Só não encontra peregrinos se andar a fugir deles"

Uma reportagem na primeira pessoa pelo Caminho Português da Costa, com a premissa de que o destino nunca seria a principal finalidade, mas usufruir do percurso, com desvios, piqueniques e conversas com tantos que o percorrem. Há muitos mais caminhos à volta dos que vão dar a Santiago de Compostela.
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Começa-se no mar, pelo areal e rochedos, atravessam-se rios, florestas, campos e cidades; fala-se com gente de todos os cantos e com todos os encantos. É o Caminho Português da Costa, um dos mais frequentados para chegar a Santiago de Compostela. E, como alguém me dizia na preparação do percurso, "só não encontra peregrinos se andar a fugir deles". Fugi algumas vezes e, ainda assim, estive sempre com caminhantes.

Tem normalmente início no Porto, comecei 84 km à frente, em Viana do Castelo, há 15 dias. Sozinha e com liberdade total, paisagens, cheiros e sons inesquecíveis, muita emoção. E é uma forma ecológica e barata de viajar.

Esta é uma reportagem na primeira pessoa e cumprindo um plano de viagem. O destino nunca seria a principal finalidade, mas usufruir do percurso, fazendo pequenos desvios, piqueniques, leituras, conversas. Há muito para aproveitar à volta dos caminhos que vão dar a Santiago.

Dezenas de pessoas encontrei, de todas as etnias, nacionalidades, idades e tamanhos, a pé ou de bicicleta. Também são considerados peregrinos quem viaja de cavalo ou por mar.

Conheci um neerlandês, de 72 anos, que há muito deixou de cumprir horários e tem vários caminhos na bagagem. O norte-americano, de 48, que há dois anos vendeu a casa, depositou o dinheiro e tem viajado pelo mundo, o que faz recorrendo a trabalhos pontuais, justifica que não tem família. A peruana crente de Maria, que vive nos EUA e que viaja com um casal de idade e os quatro filhos, entre os 5 e os 27 anos - o Francisco, a Lúcia, a Fátima e o Jacinto -, e que começou por visitar Fátima.

A enfermeira/professora americana que já caminha de chinelos e me pergunta se em Portugal os enfermeiros passam receitas como ela. Seguiu-se um debate.

Os dois amigos espanhóis, com vários percursos na mochila, incluindo o Caminho Francês, e que a pandemia interrompeu, voltaram este ano, mas não ficam em albergues devido à covid-19. O suíço, o brasileiro e o colombiano que se juntaram a meio do percurso e com quem jantei duas vezes. O casal da Guatemala com quem me cruzei em diferentes albergues. O espanhol de Oia com quem acabei por almoçar e a imigrante venezuelana à saída de Ramalhosa, que contou como foi lá parar - um amor nascido na internet.

E tantos portugueses, de norte a sul do país, também eles com as suas vidas e motivações. Como o casal da Margem Sul, ele aparentemente em boa forma física e a queixar-se das dores nos joelhos, ela com muitos quilos em cima e a reclamar das subidas. A verdade é que chegámos os três quase ao mesmo tempo à Praça de Obradoiro, o centro de Santiago de Compostela. Olhos rasos, missão cumprida, um abraço de grupo.

Este não vai ser um roteiro de viagem, com a indicação de monumentos e restaurantes, o que é impossível quando se chega ao albergue estourada, um desvio de 100 m é uma eternidade. Ao fim de palmilhar 25 e 30 km com uma mochila de 8/9 kg às costas, por subidas e descidas íngremes, pisos irregulares, alcatrão e estradas (algumas perigosas), chuva e calor, com alergias e dores em músculos que não imaginávamos ter. Mas dá para ver monumentos e igrejas.

Entre Viana do Castelo e Santiago de Compostela são 191,7 km oficiais, fora os desvios, logo, foram mais de 200. Enganos por distração ou porque há falhas na sinalização e há muito para melhorar no Caminho da Costa. Tudo muda quando se cruza com o Caminho Central, a partir de Redondela, que tem indicações regulares e precisas. Nos primeiros três dias fiz mais de 30 km, percebi que mais de 25 km é tortura para o corpo, mesmo habituado ao exercício. O ideal será ter mais dois a três dias que o planeado, para dar margem de manobra e ajustar o percurso às circunstâncias. Nada deve ser estanque, tudo pode mudar à última hora.

"Deitar cedo e cedo erguer" é um provérbio a aplicar a 100%, o pior é quando o cedo começa com chuva a potes ou na noite anterior se chegou ao albergue depois das 21h00. Construí o meu plano a partir do blogue Gronze, onde todos os caminhos estão planificados e mapeados, com a indicação dos albergues e condições. A proposta é fazer o caminho entre Viana do Castelo e Santiago de Compostela em nove etapas, que reduzi a oito para ter um dia para descanso na capital da Galiza: o dia de rainha. Emagreci um quilo: desilusão.

Viana do Castelo-A Guarda (33 km)

Chuva torrencial no primeiro dia e sem experiência nestas tragédias. Saí de Viana de Castelo já passava das 9h00, depois de parar numa pastelaria, onde ganhei um chapéu de chuva que um cliente esquecera. O oceano Atlântico e o cheiro a maresia por companhia, pescadores bem resguardados. muitas rochas e minerais, passando por Areosa, Carreço, Afife e Vila Praia de Âncora, segui pela praia, o que me custou mais alguns quilómetros. A chuva parou e dezenas de caracóis estenderam-se ao sol. Com o ferry parado entre Caminha e A Guarda - a previsão de retoma passou para 2023 -, fiz a travessia num barco-táxi, cinco euros (houve quem pagasse seis).

Os últimos quilómetros de cada etapa são os mais dramáticos, e os cinco que separam a margem espanhola da cidade revelam-se terríveis, tanto mais que fiz metade do percurso com havaianas, por ter molhado os ténis num ribeiro cuja profundidade calculei mal. Cheguei sem vontade de jantar. Mas é uma das minhas etapas preferidas, pela proximidade do mar e pelos cheiros.

A Guarda-Baiona (34 km)

A etapa dura do dia anterior e a chegada tardia fez com que saísse às 10h00, mais uma vez com muita chuvinha. O chapéu de chuva não funciona quando há vento, o que era o caso. Paisagem maioritariamente marítima, com muita vegetação, linda, em Oia, as casas em pedra separam o mar das montanhas. Poderia ter ficado em Porto Mougás, mas avancei mais 7 km, até Baiona, final ainda mais sofrido que no dia anterior. Psicologicamente, é o pior percurso. Vê-se a cidade ao longe, curvas e contracurvas, a estrada parece não ter fim. Cheguei e nem havia força para anotações. É das cidades mais bonitas, harmoniosa.

Baiona-Vigo (28 km)

Um filme para sair do albergue, primeiro desapareceram as chaves do cacifo, depois a credencial e outros documentos. Saída às 9h00, começando a ser habitual ser a última a deixar o albergue. O mar aos pés, passando por Nigrán, Saiáns e Oia de Vigo. Em Vigo, salva-se o centro histórico. Conhecem-se bem os peregrinos: coxear, pensos e ligaduras, um andar cambaleante.

Vigo-Redondela (18 km)

O interesse de Vigo é estar próximo das ilhas Cíes, e não poderia deixar de as visitar. Têm um número limitado de entradas e que são autorizadas pelas entidades oficiais. Consegui comprar o bilhete na véspera, mas em época alta aconselha-se a reserva online. Vigo tem sempre ferries, ao contrário de outras cidades próximas, em que apenas circulam na época alta. Passagem por 21 euros e que demora cerca de 45 minutos. Entramos no Parque Nacional Ilhas Atlânticas de Galiza, em águas azul-turquesa e recifes, só não parecem as Caraíbas porque são frias, mas nada de mais para quem está habituada às temperaturas portuguesas. Tem um parque de campismo. Não fiz os percursos pedestres, almocei e preguicei na praia. Regressei a Vigo rejuvenescida, passava das 15h00. O pior percurso, por estradas nacionais, em alguns sítios perigosas. A ria de Vigo e os viveiros de mexilhão estão visíveis, mas ao longe. Destaca-se o monumento aos desaparecidos na Guerra Civil de Espanha, assassinados no Alto da Concheira.

Redondela-Pontevedra (22 km)

O segundo percurso mais bonito do Caminho, quase sempre em terra batida, por campos e pinhais, mas também com subidas e descidas bem inclinadas. A hora de saída começa a entrar nos eixos: 7h45; quanto mais cedo, mais pessoas encontro. "Olá, buenos dias, bon camino", as frases repetidas. Uma paragem de duas horas na mata para descansar e comer, falta um terço para o fim. Estão previstos 32ºC. À chegada a Pontevedra há um caminho complementar e que é mais fresco. Cheguei as 17h00, com tempo para repousar, dar uma volta pela cidade e jantar com calma - gostei.

Pontevedra-Caldas de Reis (24 km)

Saída às 6h30, uma boa hora, e que dá para fazer metade do percurso até às 10h00. Os sons são imperdíveis. Encontro outra das maravilhas da Galiza: as cascatas do rio Barosa, que ficam a 400 m do percurso, mas como estou a 6 km de Caldas de Reis vale a pena o desvio. Ficam no Parque Natural do Rio Barosa e não estão sinalizadas. Paragem para tomar banho, comer o farnel e até passar pelas brasas. Caldas são terras de termas, algo que aprendi a apreciar no Gerês. Fiz jatos de água quente (10 euros) e ligaduras frias nos pés e pernas (15 euros), e quase fiquei como nova.

Caldas de Reis-Padrón (22 km)

Saída às 7h00, por um percurso lindo e bem sinalizado. Compete em beleza com o que liga Redondela a Pontevedra, com a vantagem de ter muito mais sítios para descansar. Muita gente só e acompanhada, encontro pela segunda vez a família peruana, levavam um carrinho de dois lugares para as crianças. Poderia ter avançado uns quilómetros e há quem o faça para deixar menos quilómetros para a etapa final, mas estava muito calor. Cheguei a Padrón às 14h30 e deu para visitar monumentos e apreciar o bar do D. Pepe, um castiço. Ao jantar não podiam faltar os pimentos padrón.

Padrón-Santiago de Compostela (27 km)

Mais uma etapa pelo meio da floresta, com saída às 8h00, depois do pequeno-almoço no D. Pepe (abriu às 5h00), torradas com tomate e azeite. Às 13h00 estendi a minha canga no pinhal e almocei, uma paragem de duas horas e com tempo para ler. Adorei o painel Caminho da Diversidade, da Fundação Ingada, em Rocha Velha. Cheguei à praça de Santiago de Compostela às 17h50, num domingo e com muita gente. Deixei o levantamento da credencial oficial para o dia seguinte. É necessário fazer pelo menos 100 km a pé ou a cavalo, 200 km de bicicleta ou 200 milhas náuticas e o restante a pé desde o porto de desembarque, o que deve estar registado na credencial de peregrino, com pelo menos dois carimbos por dia.

Roupa

O mínimo possível, calças que se transformem em calções, calções de ganga, T-shirts, um polar de fecho, meias para caminhada, pijama e T-shirt para as noites mais frias. Um lençol-saco em tecido sintético é suficiente para dormir (os albergues são quentes), se não chegar veste-se o polar. Toalha de desporto e chapéu tipo panamá. Levo sempre um pano africano (canga), que dá para estender na praia e no campo e pode servir de toalha, de vestido ou de saia.

Calçado

Os ténis com que corro, pois assim não há bolhas, ao contrário do que vi em quem levava botas ou sapatos. Os ténis podem proteger menos das entorses, mas os bastões também ajudam, equilibrando a passada. Sandálias de caminhada, como recurso, que devem ser usadas com meias. Chinelos.

Alimentação

Ter sempre uma refeição à mão, seja para o pequeno-almoço (nem sempre há pastelarias abertas) ou para comer pelo caminho, se não houver alternativas. Os piqueniques são o melhor da caminhada. Fruta, barras energéticas e de cereais, água.

Medicamentos

Um anti-inflamatório faz maravilhas aos músculos e paracetamol para quando as dores apertam. Pomadas para as dores musculares, para os pés e para as alergias a picadas de inseto e a calor (com corticoides). A que se usa para os bebés. Repelente. Pensos.

Dormida

Albergues (públicos, privados e religiosos). Os públicos ficam em edifícios históricos e no centro das localidades. Fecham às 22h00 e o acesso é por chegada. Oito euros por cama no dormitório, mas apenas dão a fronha e a capa de colchão, descartáveis. Nos privados paguei entre 12 e 17 euros, com roupa de cama, e um deu toalha (também se aluga). O mais caro foi o Seminário Menor, em Santiago de Compostela, demasiado grande e fora do centro, o que tira a vontade de uma volta à noite.

Indispensáveis

Os ténis, os bastões, capa de plástico, chapéu, protetor solar e saco para cubos de gelo (para os músculos), lenços de papel, óculos de desporto. Levo sempre sabão azul e branco (desinfeta e lava tudo) e óleo de coco (para o corpo, o cabelo e até para cozinhar).

ceuneves@dn.pt

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