Só faltaram três golfinhos à chamada
São 28, talvez 29. Em março apareceu por ali um e agora foi de novo avistado, a nadar com os outros. É o mesmo, reconhecem-lhe as barbatanas, "é grandinho", mas ainda não tem nome este golfinho que veio "de fora", do mar, até ao estuário do Sado, com Troia de um lado, Setúbal na outra margem e a serra da Arrábida misteriosa debruçada sobre o rio e o mar.
Carlos Silva é o Lobo do Mar, como o próprio vigilante da natureza se apresenta ("escreva lá no jornal assim"), tem 29 anos disto, de andar de um lado para o outro no estuário e na baía a ver-lhes as barbatanas, a conhecer-lhes as brincadeiras, a acompanhá-los na saúde e na morte, apenas para os monitorizar. O palavrão traduz-se numa coisa simples: ver onde andam os roazes-corvineiros do Sado, assinalar a sua presença, anotar comportamentos, registar coordenadas e tempos.
Ákala também veio de fora, há coisa de dois anos, este que foi visto pela primeira vez em março ainda não se sabe se é um viajante acidental, apenas de passagem, ou se acabará por se fixar por ali. Se o fizer será o 29.º golfinho da única comunidade residente em Portugal: fixados ali no Sado, na zona marinha adjacente da costa da Arrábida e ao longo da península de Troia.
Às 10.45 de uma sexta-feira, o barco de fiscalização do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) sai do porto de Setúbal, com o marujo Lobo do Mar ao leme, acompanhado de Ana Cristina Falcão, a técnica do ICNF, Marina Sequeira, bióloga do instituto, e Inês Brito, investigadora do Mar da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. O percurso do barco é fixo: acompanha-se a margem norte até aos estaleiros da Lisnave, atravessa-se o estuário, percorre-se o canal sul. Procura-se nos mesmos sítios para os encontrar. Só se sai para fora do estuário se for necessário. Naquela manhã não será o caso. Há uma primeira paragem em frente dos estaleiros, "não vá alguém andar por estas bandas", como diz Ana Cristina enquanto espreita pelos binóculos. Sem sucesso.
Só pelas 11.19 se veem os primeiros roazes, o nome desta espécie de golfinhos. Daí em diante, durante pouco mais de uma hora será um festim de saltos, brincadeiras, deslocações. "Estão muito participativos", dirá Marina Sequeira. Todos concordam. Eles aparecem aos dois, aos três e outras vezes mais. Ana Cristina e Carlos não param num pingue-pongue de nomes, um simples olhar e a sentença imediata: "Esta é a Esperança e a cria. Olha o Unicórnio. E o Serrote." Nem dez minutos depois, novo grupo. "O Raiz", aponta Ana Cristina. Numa folha A4 faz-se o registo destes avistamentos: nomes, tempo, coordenadas, comportamentos - estamos em N 38º 28" 328", W 08º 50" 128", são 11.28. Há golfinhos a "socializar", outros a "brincar", aqueles a "saltar" ou apenas em "deslocação".
Este registo dos que foram vistos permite comparar como dados coligidos em saídas anteriores. Por norma, a monitorização pelos técnicos é feita quinzenalmente, faça chuva, faça sol, estejam as águas picadas ou o mar chão. Durante a época balnear, com o aumento da pressão humana (há mais barcos de recreio, disparam as visitas de embarcações turísticas) tentam fazer saídas semanais. Por esta altura, há outros reforços no estuário. Num bote, dois homens vão acompanhando os barcos que trazem turistas para garantir a boa conduta na observação dos golfinhos. Há regras apertadas para o fazer, para evitar que se perturbe em demasia a comunidade de roazes-corvineiros.
"Quando há situações anormais, saem logo para o estuário", explica Ana Cristina Falcão, como por exemplo com um golfinho que dê à costa ferido ou morto. E o sobressalto quando cai um alerta desses é quase egoísta: a preocupação é se se trata de um roaz do Sado ou de um exemplar que vem de fora. A explicação é simples: o golfinho designa genericamente várias espécies, e, ao contrário do roaz-corvineiro do Sado, singular e raro, fora do estuário anda o boto, que é muito costeiro e pequeno (pode ser metade do roaz), e golfinhos-comuns, a espécie mais comum nas costas portuguesas. No Sado, os roazes são uma das poucas populações que vivem em estuários europeus. "A população residente significa que estão aqui durante o ano, permanecem toda a vida, na baía e no estuário, é este o seu habitat, como explica ao DN Marina Sequeira, apresentada com humor como "a mulher dos golfinhos", pelo conhecimento que tem das espécies através do estudo que desenvolve há anos com estes cetáceos.
Todos os cuidados são poucos, como avisa o folheto da Reserva Natural do Estuário do Sado: "O reduzido efetivo populacional, associado a fontes de ameaças como a qualidade da água do estuário, o aumento do tráfego marítimo e poluição acústica, ameaçam esta população singular em Portugal continental e rara na Europa." O trabalho com os operadores vai tra- zendo resultados, o problema acaba por ser mais o curioso ocasional que passa no seu barco de recreio. Quando foi a deslocação do cais dos ferries que garantem a travessia entre Troia e Setúbal, os golfinhos acabaram por se adaptar com mais facilidade do que se temia. "O ferry faz sempre o mesmo caminho, num determinado horário, com o mesmo barulho", anota Ana Cristina Falcão. "O comportamento é diferente com as embarcações de recreio", que fazem percursos não definidos.
Lobo do Mar explica da sua experiência de 29 anos. "Quando se fartam da presença humana batem com as barbatanas na água." A equipa do ICNF também não abusa nem insiste no acompanhamento dos grupos que se vão mostrando. "Quando é preciso procurar fora, é mais difícil. Há mais embarcações, é preciso passar Troia, no estuário é mais tranquilo." Naquela manhã, o Arrábida não sai do estuário. Depois dos primeiros avistamentos, os vários grupos que foram sendo encontrados deslocavam-se para águas do interior do Sado. É à frente dos barcos gigantes ancorados nos estaleiros da Lisnave que se vão contando os golfinhos. "Arpão, Serrote de novo, o Cavalito, Ligeiro."
As barbatanas dorsais são os seus bilhetes de identidade. Ana Cristina já reconhece quase todas, apesar de só andar ali regularmente há seis meses. Socorre-se de quando em vez de uma cábula, um catálogo com fotos e as características principais de cada roaz-corvineiro, ou do olho conhecedor de Carlos Silva. No catálogo indica-se o ano da primeira observação ou do nascimento, quando é possível, e refere-se "mãe de/filho de" mas também se indica com que outro golfinho "se pode confundir". O jornalista confessa a sua incapacidade para perceber: confundem-se todos. "Arpão, Ligeiro, Mr. Hook, Raiz", os nomes vão sendo anotados. O Mr. Hook, que é uma fêmea, aparece várias vezes. Quase só se consegue identificar o género de cada bicho quando andam com as crias. E só as fêmeas acompanham as crias.
O Luki é de setembro de 2014. Foi batizado por alunos de agrupamentos de escolas que fazem parte dos concelhos da Reserva do Sado: Alcácer do Sal, Grândola, Palmela e Setúbal. São os estudantes que agora fazem esta escolha, a partir de uma lista prévia de nomes, depois de uma decisão que foi tomada pelo Conselho Estratégico da Reserva. "Envolve os alunos e as escolas e é uma maneira de promover a sensibilização e a educação ambientais", esclarece Ana Cristina Falcão.
De dez em dez minutos, a técnica regista o que observa. Quando regressar à sede da Reserva, em Setúbal, vai inserir os dados recolhidos no computador e ver uma a uma as fotos que Inês Brito vai tirando de cada golfinho que se cruza com o barco. Pode ser que ajudem a identificar melhor algum roaz que tenha escapado aos olhos. Pelas 12.17, o Arrábida acelera à procura de um último grupo. Já foram identificados 26 roazes, mas faltam três que ainda não deram sinal. Escuro, Negro, Asa, sobretudo este preocupa a equipa. "Estou a estranhar, é a primeira vez que não o vejo numa saída", diz Ana Cristina, com os olhos fixos no horizonte. O Lobo do Mar também está preocupado, salvou-o uma vez. Observado pela primeira vez em 1984, Asa é como que um patriarca da comunidade. Nas saídas seguintes, os olhos de uns e outros vão fixar-se nas barbatanas. À procura daqueles cortes característicos do Asa.
O dia em que Asa voou
Na manhã de 7 de abril de 1999, Asa terá ido atrás de alimentos suculentos, os chocos que fazem a fama gastronómica de Setúbal e procuram em cardume o estuário do Sado, naquela época, para a sua reprodução. Ficou preso no lodo e assim foi encontrado, "arrojado", que é como quem diz deu à costa, como conta ao DN Carlos Silva, o Lobo do Mar que esteve no seu salvamento. A solução foi criar uma represa artificial de água que fosse ajudando o roaz a respirar. Mas faltavam ainda mais de seis horas para a maré subir até ao Esteiro do Carvão, notou o vigilante da natureza.
A decisão acabou por ser a sua retirada pelo ar, de helicóptero, para evitar que o Asa secasse. Não foi uma operação fácil: a aeronave disponibilizada pela Força Aérea à Reserva Natural do Estuário do Sado, a pedido desta, levou ainda 90 minutos a chegar e depois o barulho ensurdecedor das pás das hélices quase punha em causa a operação de salvamento. Colocado na maca, o roaz, que hoje terá uns 40 anos, acalmou, ficou estático e acabou por ser levado sobre as águas do Sado até uma zona mais profunda onde pode voltar a nadar e a flutuar.
Anos mais tarde, esta seria uma das Histórias dos Roazes do Sado, o nome de um livro infantil (de Raquel Gaspar e Marcos Oliveira, edição Tróia-Natura, 2012) que ficciona episódios dos golfinhos do estuário para melhor sensibilizar os miúdos para a necessidade de salvaguardar esta "população em declínio".
Para salvaguardar esta comunidade, há também um "código de conduta na observação de golfinhos", que alerta para as desnecessárias navegações descuidadas que "podem perturbar os roazes". E invoca-se mesmo a lei para lembrar que "é proibido perseguir ou provocar a separação de um grupo de roazes" e "tocar ou alimentar os roazes", nunca se aproximar a menos de 30 metros "exceto quando forem" os cetáceos a fazê-lo "voluntariamente da embarcação". São ainda identificados cinco "sinais de perturbação" que devem levar à interrupção da observação destes golfinhos, como "batimentos repetidos da barbatana caudal na superfície da água" ou "natação evasiva e repetido afastamento" do barco.