"Só deve ir a um serviço de urgência o doente referenciado", defendem médicos

Em janeiro, as urgências de todo o país receberam mais de 500 mil casos, muitos não urgentes. A afluência excessiva é um "problema complexo", "sem resposta simples" ou "só com uma única solução", defendem os diretores das urgências dos dois maiores hospitais do país. Mas acreditam que é possível a mudança com investimento em literacia e no funcionamento das unidades. A tutela promete plano até ao verão para mudar regras da referenciação.
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Na última semana, a afluência às urgências hospitalares de todo o país rondou, diariamente, entre 70 mil e 90 mil casos. O dia com maior fluxo foi logo a segunda-feira, dia 20, em que foram registados 90.517 episódios. Destes, só 6518 ficaram internados e 4389 abandonaram o serviço por vontade própria antes de serem vistos. Dos observados, 37.666 foram considerados pela triagem de Manchester como não-urgentes, recebendo a pulseira verde, e 48.075 foram considerados urgentes, 39.453 receberam a pulseira amarela e 8622 a laranja.

Os dados constam do portal do SNS e dão conta de que no mês de janeiro, segundo a monitorização da última análise mensal, as idas às urgências ultrapassaram o meio milhão (510.038 episódios), mais do que em janeiro de 2022 (447.535) - ano que terminou com mais de seis milhões de atendimentos. Mas do total de casos em janeiro de 2023 quase metade não tinha indicação para ir a uma urgência, só 274 mil foram considerados doentes urgentes.

O cenário não é novo. Aliás, tem muitas décadas e muitas razões para que tal seja assim. Ou seja, que "a urgência seja vista como uma porta aberta para resolver todas as situações, quando não é assim. As urgências são só para doentes urgentes", defendem os médicos. Mas neste momento atingiu-se um limite, até porque é cada vez mais difícil assegurar escalas, devido à falta de médicos.

O diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, disse mesmo esta semana, num encontro de médicos e de outros agentes prestadores de serviço no sistema público, que é "inadiável" encontrarem-se medidas para pulseiras verdes e azuis, anunciando que vai ser trabalhado um novo modelo de regras de referenciação para o acesso à urgência. O ministro, Manuel Pizarro, reforçou que até ao verão haverá um novo plano.

Mas quem está no terreno avisa que qualquer mudança de paradigma "vai levar tempo" e que tem de haver "grande investimento em soluções alternativas que respondam à necessidade do utente naquele momento, para evitar que vá a uma urgência". Portanto, "há mudanças a fazer nos cuidados primários, nos hospitais e até na Linha Saúde 24", defendem os médicos João Gouveia e Nelson Pereira, diretores dos maiores serviços de urgência do país, instalados nos Hospitais Santa Maria, em Lisboa, e no São João, no Porto.

Os dois concordam que para haver cuidados de qualidade é preciso arranjar outras portas de entrada do utente no sistema que não seja a porta da urgência, e para tal também é preciso apostar na literacia e na educação em saúde das populações, para que "aprendam a usar adequadamente a urgência".

João Gouveia argumenta ao DN que os problemas de hipertrofia da urgência hospitalar são os mesmos de há 50 ou 60 anos, recordando até "uma apresentação feita pelo prof. Jaime Celestino da Costa, aquando da criação da urgência do Hospital de Santo António, em que ele já enunciava os problemas de hoje, alertando a unidade para não cometer o mesmo erro que tinha sido cometido na urgência dos Hospitais Civis de Lisboa, que já vivia a hipertrofia do serviço. Imagine há quantos anos é que isto foi! Nunca se deve hipertrofiar ou urgencizar um hospital. É um erro". No entanto, reconhece, "tal acontece também porque os hospitais acabam por ser obrigados a cometer esse erro, devido à afluência que têm e pelo próprio funcionamento do sistema de saúde".

Destaquedestaque6.081.512. Urgências Este é o total de atendimentos nas urgências hospitalares em 2022. Segundo dados do SNS, representa mais 17% do que em 2021, que teve cerca de 5.200.000. Mesmo assim, 2022 ainda teve menos 5% de casos nas urgências do que 2019.

Portanto, para o médico intensivista é muito simples: "Só o doente referenciado deve entrar num serviço de urgência, seja pelo INEM, pela Linha SNS 24 ou pelo médico de família. Um serviço de urgência é criado para ver doentes urgentes e emergentes. Em 2002, foi legislada a missão deste serviço, mas continuamos a cometer o mesmo erro."

De tal forma "que somos dos países do mundo com maior número de urgências por habitante, mas há, de facto, várias situações que contribuem para esta afluência excessiva. Uma tem a ver com a passagem para a saúde de uma quantidade enorme de problemas sociais e económicos, que não deveriam ser da responsabilidade da saúde, mas que acaba por ser este setor a resolvê-los. Outra tem a ver com a insatisfação enorme das pessoas e a baixa motivação em geral, que muitas vezes as leva a procurar uma urgência para justificarem alguma situação de absentismo.

Outra razão tem a ver com o facto de haver uma quantidade enorme de pessoas que tem um problema de saúde que para elas é grave, mas que, na verdade, não o é do ponto de vista da saúde, e que acha que a única porta aberta para o resolver é ir à urgência. E isto é uma carga enorme para o sistema de saúde, consome imensos recursos e faz com que o sistema não esteja a fazer o que deve".

Na opinião de João Gouveia, aquilo que o sistema deve fazer "é prestar cuidados de qualidade à população", e tal só é possível se tivermos como objetivo "urgências referenciadas". E reforça: "É preciso arranjar outras portas para o doente entrar no sistema, que podem ser uma linha telefónica como a Linha SNS 24 ou uma equivalente, que orienta o doente no sentido de o ajudar a resolver a situação em casa ou a encaminhá-lo, se for caso disso, para o centro de saúde ou para um hospital, se for urgente ou emergente." Na prática, "isto significa que a entrada do doente no sistema de saúde tem de ser ordenada, porque os hospitais não têm capacidade para continuar a ter de responder a esta quantidade enorme de urgências".

Destaquedestaque"A entrada do doente no sistema de saúde tem de ser ordenada, os hospitais não têm capacidade para continuar a ter de responder a esta quantidade enorme de urgências".

Quem está no terreno diz que a resposta ao problema se deve centrar no investimento em mudanças estruturais, em soluções a montante das urgências: "Mais investimento nos cuidados primários, na valorização dos médicos de família - não é possível haver tanta gente sem médico de família -, mas estes também têm de se recentrar, e isso mesmo foi assumido por alguns colegas no encontro desta semana, não estar a sua atividade tão dependente da consulta do dia ou da consulta mais dilatada no tempo. Os próprios hospitais têm de mudar o funcionamento, conseguindo mais tempo para consulta aberta, têm de ter consultas de urgência nos próprios serviços, mais hospitais de dia abertos mais tempo também - muitas situações que vêm à urgência seriam resolvidas em hospitais de dia se estes não estivessem abertos num tempo limitado. Tem de haver mais hospitalização domiciliária, mas sem se desviarem alguns recursos, tem de haver alguma lógica".

João Gouveia acredita que "este é o caminho, e o caminho faz-se investindo em soluções que só levem doentes referenciados às urgências". Sabe que não será "um caminho rápido. Não podemos pensar que no final do ano temos o problema resolvido", mas "não podemos perder este objetivo de vista e é preciso que se comecem a fazer todas as mudanças estruturais necessárias para que hospitais e centros de saúde funcionem de forma mais articulada".

Ou seja, se "o meu objetivo é ter urgências única e exclusivamente referenciadas vou trabalhar para ele, o que implica também que tenho de ter uma urgência muito funcional, ativa e com uma excelente ligação a todas as outras estruturas de saúde, e com profissionais diferenciados, que queiram fazer a sua vida na urgência", defendendo assim, e ao contrário do que foi decidido pela Ordem dos Médicos, a criação de uma especialidade para a medicina de urgência e emergência. O desafio, agora, "é conseguir mudar este paradigma ao mesmo tempo que se dá aos profissionais qualidade de vida, porque o que as novas gerações querem hoje não é o que se queria há 15 ou 20 anos".

Para Nelson Pereira, diretor da Unidade Autónoma de Gestão (UAG) de Urgência e Medicina Intensiva do Centro Hospitalar Universitário de São João, o problema "é complexo e não tem respostas simples nem únicas". Não tem dúvidas de que o objetivo nesta fase deve ser promover a ida à urgência "só para o doente referenciado, mas tal não significa retirar o acesso aos cuidados a quem precisa deles. O que defendo, mais do que referenciação, " é a regulação do acesso".

Portanto, "as pessoas têm de ter a porta da urgência aberta sempre que precisem, o que se passa é que muitas vezes não sabem se precisam ou não, e, para isso, tem de haver sistemas de acessibilidade que lhes permitam tirar essa dúvida". E exemplifica: "Se a Linha SNS 24 disse à pessoa que a ida ao serviço de urgência não é a situação adequada, o sistema tem de lhe dar uma alternativa concreta, com data e hora marcada, para que não fique em causa o contacto de saúde que responda à necessidade que a pessoa tem naquele momento".

O diretor da maior urgência do Norte sublinha: "É preciso ter consciência de que não é possível mudar o paradigma da referenciação ou da regulação do acesso ao serviço de urgência sem um investimento muito grande nas respostas para estas situações. E isto passa, naturalmente, por aumentar a disponibilidade dos cuidados de saúde primários - e ouvimos nesta reunião médicos de família a dizerem que precisam de reconfigurar a sua própria oferta, a atual está muito baseada na consulta da hora ou num prazo mais dilatado, para dar resposta precisamente ao tipo de situações para as quais hoje as pessoas não encontram resposta senão ir ao serviço de urgência".

Destaquedestaque"As pessoas têm de ter a porta da urgência aberta sempre que precisem, o que se passa é que muitas vezes não sabem se precisam ou não, e para isso tem de haver sistemas de acessibilidade que lhes permitam tirar essa dúvida."

Nelson Pereira diz também ser necessário que os próprios hospitais reflitam sobre o seu funcionamento, porque também têm de melhorar a sua resposta. "É preciso organizar mais respostas em mais tempo útil, nomeadamente em consultas. A própria Linha SNS 24 também disse neste encontro que tem de mudar algumas coisas do ponto de vista do trabalho que faz hoje, estando a estudar, inclusive, a possibilidade de terem teleconsultas para os contactos com linha. E tudo isto é muito importante, porque é preciso haver toda uma reconfiguração da oferta dos diferentes prestadores de saúde, de forma que as pessoas sintam que têm uma resposta para a situação que é aguda, mas não urgente. É preciso que estas não se confrontem com a necessidade de ir a um serviço de urgência mesmo que saibam que não é o local adequado para o problema."

E argumenta: "Há uma procura excessiva de doentes, alguns não são verdadeiramente urgentes, mas há várias causas para que tal aconteça, sendo necessário intervir e investir nos fatores que influenciam a situação." Um deles é "a literacia em saúde. É preciso explicar melhor às pessoas o que é uma urgência e sobretudo tentar transmitir-lhes que se a usarem de forma inadequada isso coloca em risco as pessoas que têm situações mais graves".

Nelson Pereira assume que, "tão importante quanto tudo isto, é a consciência de que há um caminho a fazer num horizonte que não será imediato, que vai demorar a percorrer, mas que agora, pelo menos, há um objetivo, que é o de chegar ao momento em que as pessoas só recorrem à urgência depois de passarem por um dos três agentes que devem estar a montante, INEM, para as situações emergentes, cuidados primários e Linha SNS 24".

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