"Smart Cities deixam um iceberg escondido"

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A segmentação do mercado das preferências individuais está a funcionar de forma quase perfeita e o marketing direcionado parece falhar muito pouco. O mundo dos grandes dados e da sua utilização já não necessita de abordagens distópicas ou da imaginação futurista. A indústria que cresceu exponencialmente nos últimos anos em torno deste negócio tornou cada um de nós numa mercadoria valiosa, graças aos vestígios digitais que deixamos em quase tudo o que fazemos no dia-a-dia. O sonho das smart cities não precisa de grande criatividade.

A questão que se coloca, hoje, está muito mais relacionada com a eficiência na identificação e tratamento dos dados disponíveis, do que na sua disponibilidade. Conectividade, velocidade, reduzida latência são expressões cada vez mais comuns na governação urbana, substituindo as clássicas preocupações com equipamentos, semáforos e saneamento. O subproduto deste negócio é precisamente o serviço que oferece aos governos locais: eficiência na avaliação de serviços, melhoria e rapidez de resposta, adaptação, e apoio à decisão em políticas públicas. Porém a verdadeira indústria está, precisamente, na informação recolhida e não significativa para a governação local: comportamento, escolhas, preferências de indivíduos e de grupos.

Uma ponta do iceberg que esconde um conjunto de problemas submersos. As novas soluções de governação usando as tecnologias digitais com vista à eficiência das funções de governo urbano enfrentam diversos desafios: o volume de dados e a forma de os tratar; a infraestrutura tecnológica e os seus custos; a articulação entre diferentes setores da governação das cidades; a mimetização das soluções tecnológicas, essencial para a redução de custos, mas ineficiente na adaptação aos contextos específicos. No entanto, o principal desafio resulta, precisamente, do confronto de paradigmas. Por um lado, a cidade orgânica, informal e em processo de permanente construção e adaptação. Por outro, a visão estruturada, controlada e determinada por dados, resultante das smart cities.

A oferta de uma utopia digital, onde os dados eliminam problemas, não pode inibir-nos de discutir outras dimensões fundamentais da vida urbana. É esta a oportunidade para colocar as questões clássicas: em que cidade queremos viver e o que significa viver em cidade? Recentrar a função tecnológica como instrumental e não como determinante das escolhas é um dos desafios mais prementes do mundo urbano contemporâneo. Trocar a constatação "temos esta cidade porque a tecnologia o permite" pela pergunta "que tecnologia precisamos para a cidade que queremos?" implica reconhecer que a cidade não pode ser pensada em função das oportunidades criadas pela tecnologia, mas sim que a tecnologia deve estar ao dispor da cidade onde desejamos viver.

Pró-reitor da Universidade de Aveiro

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