Sleepwalk, o milagre americano de Filipe Melo

Filipe Melo volta ao cinema depois dos zombies para se estrear na realização com "Sleepwalk", curta que hoje passa no IndieLisboa, às 21.45, no São Jorge. Uma aventura americana feita com amor ao cinema.
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Um dos homens que nos deu o espetáculo e o podcast Uma Nêspera no Cu e produziu o primeiro filme português de zombies, I"ll See You In My Dreams, Filipe Melo estreia-se hoje no IndieLisboa como realizador de uma curta-metragem com o coração do mundo, Sleepwalk. É provavelmente o grande acontecimento da competição nacional das curtas (que este ano está ótima, refira-se de passagem). Uma história de caução moral sobre um viajante que parte do Texas para o Arizona com uma missão secreta que passa por uma tarte de maçã, que mais não é do que um MacGuffin à boa maneira de Hitchcock. Um senhor idoso que aguarda pacientemente um pedido muito especial. Mais tarde, viremos a descobrir as razões de tanta paciência por uma fatia da famosa tarte americana...

Sleepwalk tem uma sinopse misteriosa. Quanto menos se souber, melhor, embora quem tenha lido esta história em versão de banda desenhada concebida pelo próprio Filipe e Juan Cavia, para a revista Granta, saiba o poder sentimental desta proposta.

Um filme americano, portanto. Filipe Melo começa por explicar que foi para os Estados Unidos filmar esta curta porque a história só poderia ser feita lá: "Não poderia fazer o filme em Portugal. É uma história profundamente americana, mesmo tendo uma temática universal, mas há uma característica na história que faz que este enredo só faça sentido nos EUA e só isso é um spoiler. É uma cena um pouco ingrata - quem não vir o filme vai pensar que fui para os EUA só para me armar." Na verdade, mesmo a nível de mise-en-scène, tudo aqui evoca um colossal classicismo americano, algures entre a desarmante simplicidade de um Uma História Simples, de David Lynch, e o lustre dos melhores road-movies que sabem trabalhar o esplendor da paisagem americana.

Outra das interrogações que muitos vão fazer é tentar perceber como é que um tímido pianista português conseguiu fazer um filme com este arcaboiço nos EUA. A resposta começa com uma perplexidade ainda maior: "O filme foi feito em dois dias! Sim, dois dias! Não sou chico-esperto nenhum mas preparei-me muito antes, fiz um vídeo com os planos todos em animação em tempo real. Sleepwalk só foi possível porque o Juan Cavia, que desenha os meus livros de BD e esta short story, é diretor de arte de uma série de filmes na Argentina e conhecia um diretor de fotografia em Los Angeles, o Federico Cantini, que, por sua vez, ao ler o conto, viu que o diner que usamos era semelhante a um perto de sua casa. Ora, o Federico gostou tanto que nos disse para irmos para lá e filmarmos tudo com ele em dois dias com a sua equipa que faz publicidade. E arranjou-nos material à borla da Panavision com as melhores lentes possíveis." Um milagre que caiu no colo de um pianista de jazz que, para ajudar, teve todo o apoio da Força de Produção, a produtora de teatro e espetáculos musicais de Sandra Faria, que soube concorrer a um apoio da Gulbenkian logo na primeira incursão na sétima arte.

Sobre esse apoio da Gulbenkian, Filipe Melo diz-se grato: "Se apostaram neste meu projeto não foi pelos meus lindos olhos, foi porque gostaram mesmo do seu potencial, muito embora os meus olhos sejam mesmo bonitos... Mas foi uma experiência muito kamikaze, pois continuava a não haver muito orçamento. Rodar quinze minutos em dois dias é uma loucura! Parecia que iria ser fácil porque não tínhamos muitos atores e nenhum deles era do sindicato, mas foi realmente uma loucura."

Já agora, refira-se, nos EUA, com atores sindicalizados, uma obra como Sleepwalk talvez só com orçamento de longa-metragem, sobretudo porque é impossível pagar abaixo da tabela os salários dos atores. Ou seja, o engenho de Filipe foi tão grande que podemos assumir que esta era a única forma de dar a volta ao sistema de Hollywood, sobretudo com um imaginário cinematográfico que justifica uma escala de orçamento milionário.

"Cresci muito a ver cinema americano, tem muito que ver com a minha geração. Tenho um fascínio pela América e o seu imaginário. Quando era pequeno e via os filmes americanos, o meu sonho era viver nos EUA e estar em Hollywood, mas depois crescemos e começamos a pensar que a América não é aquilo. Agora vemos que a América do Reagan não é tão diferente desta América do Trump, em que atrás daquelas coisas passam-se outras absolutamente erradas. O filme é um pouco isso ou acerca de deixarmos de ver as coisas sem ser como um conto de fadas, não sei...", conta o improvável cineasta.

Aliás, sobre esse improvável sortilégio de estar a estrear-se em cinema, com uma equipa americana, na América e a dirigir atores, não se socorre da expressão "surreal", prefere antes falar de privilégio: "Sim, do privilégio de estar a fazer algo do qual a vida me tinha afastado. Tornei-me músico e não cineasta, mas ali estava a aproveitar o momento e não a tentar dar um passo para provar algo. De certa maneira, isso deixou-me bastante tranquilo."

Uma tranquilidade, adivinhamos nós, que se sente na serenidade do próprio tom da realização, capaz de progredir a história com música e ideias de BD. E é precisamente com a música feita em parceria com Norberto Lobo que o peso "americano" desfila de forma tão sóbria pelo filme. Norberto Lobo e não Legendary Tigerman, que poderia ser demasiado evidente: "Sou fã do meu amigo Paulo Furtado e também vizinho, mas era cliché pedir a ele."

Depois de ter realizado a meias com João Leitão a série Mundo Catita (passou há dez anos no Indie), Filipe diz-nos que ficou com menos medo de falhar: "A outra opção é não fazer. Como gosto tanto de filmes, pensei que seria angustiante se um dia fizesse um filme que fosse mau, mas sei que é preciso também falhar. Claro que pensei que poderia ser terrível estar a ver o meu filme de estreia com pessoas ao lado e o filme ser péssimo... Mais tarde percebi que isso já tinha acontecido com a curta I"ll See You in My Dreams, mas na altura não tinha percebido. Hoje em dia, vejo esse filme com vergonha." Dizemos-lhe que o seu nome não constava no crédito de realização, mas não desarma: "O filme é mesmo mau e na altura julgava que era bom."

Filipe Melo não poderia ser mais autodidata. Começou a fazer filmes depois de aprender com aquilo que via como cinéfilo desenfreado e de tentar perceber como toda a parte técnica funciona, em especial rodeando-se de quem é perito em lentes e na direção de fotografia. Nunca é demais repetir, Sleepwalk parece-se com um filme de Hollywood com fotografia estilizada e valores de produção nada modestos.

A grande lição de que Filipe Melo realizador não se vai esquecer é a velocidade que é preciso ter na hora da rodagem: "A toda a hora estamos a ter de decidir e as decisões têm mesmo de ser rápidas. Não há tempo para pedir para ficarmos um pouco mais a pensar. A equipa não podia ficar parada à minha espera." Contudo, Sleepwalk nunca é precipitado, antes pelo contrário.

Depois do Indie (dia 2 a curta volta a ter uma nova sessão), Filipe quer que o filme seja visto mas não da forma tradicional com que muitas curtas são exibidas comercialmente, ou seja, em complemento de uma longa-metragem. Diz que não é muito justo para o espectador, ele que há uns tempos soube chamar público em muitas sessões esgotadas no Nimas, onde dinamizou a passagem de filmes de culto.

O seu desejo é provavelmente estrear o filme em apenas dois dias com sessões a preço reduzido. E esta carta de amor pela melancolia americana só faz sentido ser vista num grande ecrã...

As boas curtas do Indie

Amor, Avenidas Novas
Duarte Coimbra
La La Land lisboeta? Não é bem assim, mas Amor, Avenidas Novas, curta-metragem que entretanto vai competir em Cannes, na Semana da Crítica, é a prova de nascimento de um cineasta capaz de explorar uma ideia de encantamento romântico. Duarte Coimbra é uma descoberta fulgurante que aqui assina um pequeno conto urbano de um jovem solteiro que se apaixona por uma estudante de cinema numa rodagem de um filme de escola. Amor, Avenidas Novas, também filme de escola da Escola Superior de Cinema, funciona por não ter tiques de filme de escola.
Dia 29, 18.30, São Jorge
Dia 5, 19.45 Culturgest

Anjo
Miguel Nunes
Estreia na realização do ator de Cartas da Guerra e Cisne. Um filme livre e "à solta" sobre o que é isso de estar apaixonado. A história de um ator chamado Miguel Nunes que tenta entrar nos Estados Unidos para visitar um amigo por quem está apaixonado. Entre o registo biográfico e a experiência do retrato snapshot de um grupo de amigos, Anjo não faz bandeira da sua marca queer nem tem ilusões de exercício de estilo. Tem sim uma força modesta que não é de menosprezar.
Dia 29, 18.30, São Jorge
Dia 5, 21.30, São Jorge

Self Destructive Boys
Marco Leão e André Santos
A dupla Marco Leão e André Santos tem construído um percurso no panorama das curtas e regressa agora com um filme mais aberto e sorridente. Self Destructive Boys narra a história da rodagem de um vídeo porno feito por um casal que tenta dirigir três rapazes heterossexuais num bosque lisboeta. Tem algo de comédia comportamental e funciona como um inquérito aos preconceitos sexuais atuais. Uma curiosa provocação que não nos mata o desejo de ansiar pela estreia nas longas destes jovens cineastas.
Dia 1, 21.30, São Jorge

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