Síria não vai ser novo Afeganistão para russos
Síria 2015 e Afeganistão 1979-1989. O que há em comum entre a primeira intervenção russa fora do espaço da ex-União Soviética desde 1991 e a última guerra travada pelo Exército Vermelho? O terreno ser o mundo islâmico. E as coincidências não ficam por aí: em ambos os casos, Moscovo socorreu um regime aliado laico desafiado por uma rebelião dominada por fundamentalistas islâmicos, financiada por países do mundo arabo-muçulmano e atrativa de estrangeiros fanatizados. Significa isto que Vladimir Putin, sempre atento ao passado nacional, ignorou as lições da história e deixou a Rússia meter-se num atoleiro?
A resposta parece ser não. No Huffington Post, Sarwar Kashmeri previa há três dias que "não haverá um atoleiro russo no Médio Oriente", enquanto na Foreign Policy, num texto datado de dia 12, Noah Bonsey imagina que as esperanças de Putin sejam de um cenário "mais Chechénia e menos Afeganistão". E mesmo Jonathan Marcus, especialista em Defesa da BBC, acredita que, conjugado com a ação no solo do exército governamental sírio, "o poder aéreo russo pode mostrar--se um fator decisivo" na definição do rumo de um conflito que se arrasta há quatro anos.
Olhemos então agora para as diferenças entre a atual intervenção militar na Síria e a década de conflito no Afeganistão: 1) mesmo com a tensão acrescida entre o Kremlin e o Ocidente por causa da Ucrânia, não há nada parecido com a Guerra Fria e os Estados Unidos não só não apoiam o lado oposto, como fizeram aos mujaedines, como partilham até o objetivo de destruição do Estado Islâmico; 2) apesar de estar em crise, sobretudo por causa da queda do preço do petróleo, a Rússia não é um Estado à beira do colapso como a União Soviética de 1979 - ninguém acreditava, mas já em 1976 Emmanuel Todd o tinha previsto, olhando para as estatísticas; 3) o regime sírio, ao contrário dos comunistas afegãos, não está isolado e conta com solidariedades regionais, como o Hezbollah libanês, o governo iraquiano e o próprio Irão; 4) não existe para os jihadistas um santuário como foi o Paquistão para os afegãos; 5) a geografia síria é muito mais suave do que a afegã, basta pensar que o Monte Hermon, perto dos 3000 metros, faz fraca figura perante os 7492 do Noshaq; 6) a campanha russa de bombardeamentos aéreos, conjugada com mísseis disparados de navios no Cáspio, não é uma invasão como a do Afeganistão, com cem mil soldados no auge da ocupação soviética
Sobretudo, do Afeganistão em 1979 para a Síria hoje existe outra grande diferença: a oportunidade da intervenção decretada pelo Kremlin. A escolha do momento por Putin merece o elogio de Sarwar Kashmeri, que sublinha que o presidente russo se apercebeu de que, no caso, parecem ser os americanos que estão num atoleiro, e que os europeus, assustados com a vaga de refugiados, querem uma solução rápida na Síria. Ao mesmo tempo, as forças de Bachar al-Assad estavam debilitadas a ponto de Moscovo correr o risco de perder o grande aliado no Médio Oriente. Acresce a isto que um entendimento com o Ocidente contra o Estado Islâmico poderia refazer as pontes entre o Kremlin e a NATO. Não menos relevante, Putin quis retaliar pelos apelos jihadistas feitos aos muçulmanos da ex-URSS.
Se no tempo da União Soviética, seis das repúblicas tinham maioria islâmica, hoje a Rússia continua a contar com uma minoria muçulmana, 20 dos 145 milhões de habitantes. Maioritários no Norte de Cáucaso e abundantes na região de Kazan, os muçulmanos estão espalhados por todo o país e ainda no mês passado foi inaugurada uma mesquita em Moscovo na presença de Putin. Este, muitas vezes suspeito de islamofobia, parece ter, pelo contrário, uma visão integradora dos muçulmanos russos, tendo mesmo já referido que em alguns pontos o cristianismo ortodoxo se aproxima mais do Islão do que do catolicismo. Esta é uma abordagem que tem de ser entendida na tradição imperial russa de liberdade de culto desde que a lealdade seja total.
Há uns meses, a Economist relembrava como Putin se inseria nessa lógica apontando a sua presença em Ufa, no outono de 2013, quando se celebrou os 225 anos da criação pela czarina Catarina de um guia espiritual para os muçulmanos. Mas não é preciso tanto, basta ver como o líder russo acabou com o nacionalismo checheno (a certo momento transformado em fundamentalista) cooptando o clã Kadyrov e deixando-o aplicar a lei islâmica.
Controlado o separatismo checheno, parece ter terminado também a vaga de terrorismo islâmico na Rússia, que teve picos no teatro de Moscovo (2002) e na escola de Beslan (2004), mesmo que esta semana a Frente al-Nusra, célula da Al-Qaeda na Síria, e o Estado Islâmico tenham decretado guerra aos russos, o que obriga a todas as cautelas.
Voltando à ideia de "Mais Chechénia e menos Afeganistão", esta só faz sentido em termos de resultado final, a eliminação de uma rebelião jihadista, mas não nos pormenores. De qualquer forma, mesmo que o passado da Rússia seja de guerra contra o islão - primeiro Horda de Ouro e depois Império Otomano - não é decisiva a questão religiosa nesta intervenção na Síria. Moscovo quer manter um aliado no Médio Oriente, preservar as bases navais no Mediterrâneo e reafirmar, com mais ganhos potenciais do que custos, o estatuto de potência. Que no fim se entenda com os Estados Unidos para uma Síria sem Assad não é de descartar. Até nisso, o resultado final será bem diferente do Afeganistão, país onde começou essa Al-Qaeda que, com os anos, de combater os russos se virou contra a América.