"Sinto-me muito desconfortável com as fugas ao segredo de justiça"
António Henriques Gaspar está a entrar no último ano do seu mandato à frente do Supremo Tribunal de Justiça. Nesta entrevista ao DN e à TSF fala dos grupos de pressão que, nas redes sociais, tentam condicionar as decisões dos juízes. Dá o exemplo de grupos feministas que têm comentado decisões da justiça, admite que é uma reação legítima, mas diz-se preocupado com os efeitos na perceção que os cidadãos têm do funcionamento da justiça. O juiz conselheiro que preside ao Supremo confessou-se ainda "muito desconfortável" com julgamentos na praça pública alimentados por fugas ao segredo de justiça e defendeu que, em alguns casos, os jornalistas deviam ser impedidos de se constituir assistentes nos processos.
Recusando comentar o caso que envolve o antigo vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, António Henriques Gaspar lembra que é praticante do que classifica como diplomacia judicial, e que "em termos gerais, é evidente que o respeito pela autonomia dos sistemas de justiça português e angolano tem de ser mútuo". Ocupando um cargo com mandato limitado a cinco anos, o presidente do Supremo escusou-se ainda a comentar as declarações da ministra da Justiça na polémica à roda do mandato da Procuradora-geral da República e não aceitou fazer um balanço do trabalho de Joana Marques Vidal. Sobre o pacto para a Justiça e o desafio lançado há pouco mais de um ano pelo Presidente da República, António Henriques Gaspar insiste que não pode falar-se de um pacto nem de uma reforma, até porque, diz, "a reforma da Justiça faz-se todos os dias". Num dos temas em que tem tido intervenção pública os poderes sancionatórios das entidades reguladoras , o presidente do Supremo deixa claro que considera que os reguladores, como o Banco de Portugal, têm competências sobre matérias sancionatórias, que deviam ser matérias penais e que o seu tribunal, o Supremo, deveria ter uma palavra nos recursos em matérias "tão sérias, tão pesadas pelas suas consequências".
António Henriques Gaspar, na abertura do ano judicial, na quinta-feira, disse que é necessário evitar a "política criminal à flor da pele", condicionada por pressões que têm assinatura. Pode partilhar connosco de quem é essa assinatura?
De vários grupos, de vários grupos. Quando disse "à flor da pele" não me referia apenas ao nível nacional, referia-me também às instituições europeias e à política criminal que, ultimamente, começa a ser também objeto da política europeia e da União Europeia. E, aí, temos alguns problemas porque nem sempre se respeitam as idiossincrasias nacionais e, por outro lado, há uma maior capacidade de intervenção de alguns setores que têm maior acesso ao espaço público ou que procuram ter maior acesso a esse espaço, e portanto podem e têm-no feito colocar como necessidade premente a intervenção penal, desequilibrando as situações. Eu não digo que não tenha de haver, relativamente a determinadas matérias, uma política penal e uma política criminal cuidadas, o que eu digo é que pode haver alguns desequilíbrios em relação à proporcionalidade, no modo como os grupos atuam, pois são muito ativos entre nós, por exemplo em alguns aspetos
Mas pode concretizar?
Nos media, nas redes sociais. Por exemplo aquilo que eu vou dizer é muito incorreto politicamente , a questão da violência doméstica. A violência doméstica é um problema que nós sentimos e que, como já disse uma vez, todos nós abraçamos como causa, agora misturar coisas que são muito diferentes é sempre um risco, pelos condicionamentos ambientais que isso pode causar. Nomeadamente, quando através de um nome ou embrulhado num nome se integram ou podem ser integradas muitas realidades.
Está a falar do processo que envolveu o juiz Neto de Moura?
Não estou a falar em caso nenhum concreto, estou a exprimir uma opinião que é aquilo que eu sinto nas análises que tenho feito relativamente a esta matéria. Quis apenas deixar um alerta, por vezes são-nos apresentadas questões aparentemente novas, com nomes novos, em que não se acrescenta nada a tudo aquilo que já temos na nossa lei e que já temos equilibradamente na nossa lei. Pode-se eventualmente, confundido sob um nome que é apenas um nome, ter realidades muito diversas que implicam soluções diversas e para as quais determinado tipo de intervenção no espaço público pode requerer soluções idênticas, e não o são nem podem ser, porque há questões de proporcionalidade, como digo.
Essas pressões e essa forma de introduzir algum desnível no sistema trabalham mais ao nível da produção legislativa ou chega mesmo a afetar a produção de decisão por parte dos juízes?
Não chega a afetar mal de nós se o fizesse a decisão por parte dos juízes, agora afeta muito a perceção externa que se pode ter sobre a decisão dos juízes. Não sei se fui completamente claro no que acabei de dizer: afeta porque os juízes julgam segundo as provas, julgam segundo os elementos que têm, julgam segundo a leitura que fazem da interpretação da lei, julgam segundo os critérios de valores que são valores proporcionais, e, por vezes, isso não é compreendido. Vejam, nomeadamente, alguns grupos que são pró-ativos nas chamadas redes sociais e que nunca aceitam a decisão do juiz, porque a decisão do juiz não é tão pesada como eles exigiriam que fosse e, aí, os juízes têm de respeitar a proporcionalidade. Por isso é que eu disse na quinta-feira também no discurso que os juízes têm de ter a coragem de enfrentar as multidões, ou as novas multidões que não estão já na rua.
Para ser mais claro para as pessoas: eu não percebi se não quer concretizar que grupos são esses, ou dar algum exemplo
São vários, são vários. Eu não queria identificar.
Mas estamos a falar, por exemplo, de movimentos ou de grupos feministas que se pronunciam a propósito deste caso concreto de violência doméstica e que vêm para as redes sociais expressar opiniões sobre decisões judiciais?
Alguns são, alguns são. Têm todo o direito de o fazer, não estou a contestar isso de modo nenhum. Estou é a dizer que esse tipo de intervenção, absolutamente legítimo, pode fazer criar a perceção de uma justiça que não responda, não digo às exigências judiciais, mas às exigências desses grupos e, aí, o juiz tem de intervir para atuar com o seu sentido de justiça, com o sentido de equilíbrio em relação, também, a outras situações que são igualmente graves.
Admite que é um exercício muito difícil nesse estado de coisas, conforme as descreve e que nós conhecemos bem, o juiz estar absolutamente imune àquela que é a perceção popular de um determinado caso?
Eu sei que é difícil, mas tem de estar, é seu dever estar.
Vamos falar do reverso da medalha até porque já falou dele a propósito do caso que envolveu o juiz Neto de Moura , a esse propósito o senhor disse que a manifestação de crenças pessoais e de estados de alma ou as formulações de linguagem de subjetividade excessiva não são com certeza prestáveis como argumentação e não contribuem para a qualidade da jurisprudência. Casos como este que envolveu o juiz Neto de Moura descredibilizam de alguma forma a justiça portuguesa?
Não falemos de casos. Eu não posso falar em casos, nem posso partir de casos.
Mas a justiça sai descredibilizada?
Eu não posso partir de casos porque, como compreenderá, se há alguém que tem de dar o exemplo de não se pronunciar sobre casos concretos sou eu.
Agora, o que eu tenho dito é uma minha preocupação de sempre e, portanto, verá que essas minhas declarações não são de agora, já são de há muito tempo, de há muitos anos. Eu preocupo-me com a linguagem judiciária, a linguagem das decisões, partindo sempre de uma ideia que também já disse em público: uma sentença não é um trabalho de autor, é um documento da República. Por isso, é preciso ter muito cuidado porque quem produz uma sentença está a produzir essa sentença e a escrevê-la em nome do povo, portanto, o que eu digo sempre é que tudo o que não seja materialmente fundamentação, seja outra expressão que não tenha sentido, evidentemente que pode estar, mas não é bom que esteja pois pode causar algum ruído e alguma perturbação nas perceções externas. Foi só isso que eu disse, mas não é de agora, não me estou a referir a nenhum caso concreto, é uma minha preocupação de sempre, já há mais de cinco ou seis anos que insisto sempre nessa matéria e quero pensar, e tenho alguns elementos para isso, que hoje em dia há muito mais atenção, muito mais cuidado com as expressões inúteis na linguagem das decisões, tendo sempre presente este dever: uma decisão judicial não é uma peça de autor, é um documento da República.
Voltando à questão das redes sociais e desses grupos de pressão que diz atuarem de forma muito ativa nas redes, não o preocupa o outro lado da moeda, não o preocupa que muitos juízes e agentes da justiça também estejam presentes nessas redes com opinião publicada e que até tenhamos nos últimos tempos juízes a dar longas entrevistas a falar de casos concretos?
A minha resposta a essa questão, que é interessantíssima, já resulta do que eu disse até agora. Os juízes têm liberdade de expressão, como é evidente, devem intervir também no espaço público, mas com todo o cuidado e toda a atenção, nunca falando de casos concretos, porque isso é um dever estatutário, o não falar de casos concretos, a não ser alguns comentários científicos assinados em revistas, mas não é dessa perspetiva que estamos aqui a falar.
Têm liberdade de expressão, devem exercê-la e, como disse devem intervir no espaço público, mas cada um sabe quais são os limites da sua intervenção; limites por um lado estatutários e, por outro, limites que são fundamentais e que eu vi nalguns comentários à cerimónia de quinta-feira que não tinham sido completamente percebidos , que constituem o dever que há de criar condições de imparcialidade e o dever que há de não ter atitudes, nomeadamente no emitir determinado tipo de opiniões, que depois possam fazer os interessados, isto é, os cidadãos, pensar que há algum prejuízo ou preconceito que afete a imparcialidade. Não a imparcialidade subjetiva do juiz, isso não quer minimamente dizer que os juízes não tenham um sentido muito forte do seu dever de imparcialidade, mas são as aparências, que eu na quinta-feira vi que não foi lida com a interpretação com que deve ser lida e como é das construções, por exemplo do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a propósito do conceito de independência subjetiva; é do ponto de vista externo, isto é, se se emite determinado tipo de opiniões é preciso cuidado, não porque não tenha o direito, mas porque tem também o dever de não criar uma perturbação que possa fazer pensar os cidadãos, não é que haja, é que possa parecer que haja algum preconceito.
Isto para mim é fundamental e posso dizer, da minha experiência, que os magistrados, e os juízes em particular, estão muito, muito conscientes desse seu dever e o cumprem com todo o rigor.
Tem tido posições muito duras em relação ao poder regulatório. Uma decisão recente do Tribunal de Santarém, a instância de recurso para as decisões dos reguladores, veio dar razão a um recurso interposto por Ricardo Salgado e Amílcar Morais Pires obrigando o Banco de Portugal a refazer todo um processo (eu não vou falar do processo especificamente, neste estavam em causa multas de 150 000 e de 350 000 para os dois arguidos). A questão aqui é que o juiz do Tribunal de Santarém inclui na fundamentação uma passagem de uma intervenção sua na abertura das primeiras jornadas do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (para quem não saiba o Tribunal de Santarém), que é uma intervenção bastante crítica sobre o papel e os poderes das entidades reguladoras. Sendo o senhor Presidente do Supremo, estas suas declarações em relação aos poderes sancionatórios das autoridades de regulação não podem ser encaradas como uma pressão sobre os juízes do Tribunal da Concorrência que têm de julgar precisamente as impugnações das decisões dessas autoridades reguladoras, esta sentença não é precisamente uma prova disso mesmo?
De modo nenhum, de modo nenhum. Eu não tenho sido muito crítico, eu tenho alertado, o que é diferente. Eu tenho alertado, não tanto para os poderes das entidades reguladoras, não tenho nada a ver com isso, isso é uma opção política e uma opção legislativa na concretização e uma política, o que tenho dito é que temos de ter muito cuidado com a desnaturação do conceito constitucional e da noção constitucional de jurisdição. A jurisdição pertence aos tribunais, constitucionalmente a jurisdição pertence aos tribunais, portanto, o que eu tenho alertado é para, não digo a retirada nem a transferência, mas para a emergência de entidades com poderes materialmente jurisdicionais e que não são tribunais. Relativamente ao poder sancionatório, não é tanto o poder sancionatório das reguladoras, é também o desvio completo ao sistema e à fundamentação, e mesmo à própria categoria dogmática das contraordenações, que não foram pensadas para determinado tipo de infrações que se consideram graves; porque se não se considerassem graves não tinham sanções tão pesadas, se têm sanções tão pesadas, então é porque são muito graves e se são muito graves então não podem automaticamente ser contraordenações.
Então, na prática, o senhor acha que os reguladores têm um poder que não deviam ter?
Eu digo: os reguladores têm, neste momento, competências sobre matérias sobretudo sancionatórias que são, em termos conceituais europeus, matérias penais. Se analisarmos a jurisprudência do Tribunal Europeu do Direito do Homem relativamente a isto, diz isso mesmo, diz que há um conceito europeu material de natureza penal que não tem a ver com os nomes a nível interno, tem a ver com as consequências, com os efeitos, com a gravidade e com a natureza das sanções. Ora, se as sanções são muito graves e se o Tribunal Europeu considera em dois casos recentes, sobretudo no caso que tem a ver com a família Agnelli da FIAT que é matéria penal, então temos aí um problema e é para isso que eu estou a alertar, só para isso, com o resto não tenho nada a ver. Há, aí, um problema de transmigração de nomes, de nomens, e, portanto, as coisas têm de ser vistas não pelo nome, mas pela matéria; se não são muito graves, não necessitam de ser puníveis com sanções tão pesadas, se são puníveis com sanções tão pesadas é por que são graves, donde deviam ser crimes e não contraordenações, é só isso.
Eu percebo a sua questão de princípio, mas num país que tem historicamente um corpo de entidades reguladoras com algumas fragilidades e com dificuldades em se imporem aos regulados, como é que acha que é possível que esse corpo de entidades reguladoras consiga ser eficaz sem ter poder sancionatório com a aplicação de contraordenações pesadas?
Essa é a grande contradição. Não quero entrar por aí porque parece que estou aqui a fazer uma apreciação política. Não estou a fazer uma apreciação política, nem o podia, nem devia fazê-lo. Estou apenas a alertar para uma consequência que é a necessidade de se respeitarem os princípios fundamentais do processo equitativo e esses exigem, para matéria penal e a matéria penal em termos europeus e na jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo não tem a ver com o nome tem a ver com substância , que sejam respeitados os princípios do processo equitativo.
Que fique claro que a minha preocupação é apenas essa, tenho todo e o maior respeito pelas entidades reguladoras, pela sua competência e pelo seu elevadíssimo nível. O meu problema é de princípio em relação a esta matéria.
Não chega para si, não lhe dá descanso suficiente, que exista uma instância de recurso independente, judicial, o Tribunal de Santarém?
É uma garantia, mas a intervenção em matéria de recurso, de impugnação judicial das decisões das sanções aplicadas pelas entidades que têm competência em matéria de contraordenações, não é uma intervenção que possa ser tão intensa nem tão completa como se fosse uma intervenção de um tribunal com o Ministério Público, com uma dedução de acusação, com um julgamento; não é exatamente a mesma coisa. Portanto, há uma intervenção judicial, mas nas circunstâncias e dado o peso das entidades que estão em causa e as especificidades técnicas, não sei se será suficiente.
Mas, para além disso, tenho ainda outro problema: são, como digo, matérias pesadas, são hard cases, e o sistema de recursos entre nós está construído de tal modo que o Supremo Tribuna de Justiça não tem nenhuma intervenção nessas matérias. Já disse também, em mais do que uma intervenção, que, neste sistema, seria necessário construir outro modelo de recursos relativamente a matérias que são tão sérias, tão pesadas pelas suas consequências, em que pudesse haver uma intervenção do Supremo Tribunal de Justiça.
[citacao:A reforma da justiça faz-se todos os dias]
Outro tema que está na ordem do dia é o Pacto da Justiça e, sobre isto, o senhor já disse que o exercício tem de ser continuado, que é agora o momento das instituições olharem sobre o conjunto, para além das ideias avulsas e, na quinta-feira, o Presidente da República sugeria que o próprio Parlamento olhasse para estas propostas que foram apresentadas. Acha que o Pacto que foi apresentado, tal como foi apresentado, já não passa de isso mesmo, de um conjunto de ideias avulsas?
Não é um pacto, não lhe chamemos um pacto porque é uma expressão que eu, por um lado, não aprecio muito e, por outro, que na nossa história recente tem uma conotação que não é muito [risos], não direi positiva, mas que não tem sido de boa memória, portanto chamemos-lhe como o próprio documento se chama a si próprio, um Acordo sobre Questões de Justiça, Acordos sobre Questões de Justiça.
É um conjunto de medidas muito interessantes, mas que têm um peso completamente diverso umas das outras. A partir do momento em que têm um peso completamente diverso umas das outras e são 88 , é óbvio que podem gerar uma leitura atomística e, portanto, não inseridas num conjunto de sistema. Por isso é que eu digo que foi um trabalho muito interessante, muito empenhado, de muita gente que trouxe a sua experiência, a experiência das suas vivências, das dificuldades que sente, que são tudo dificuldades de ordem prática, não são dificuldades de sistema nem dificuldades de soluções, são quase todas dificuldades de ordem prática. Agora, vamos pegar nisso, vamos encontrar aí um conjunto coerente ou uma série de conjuntos coerentes dentro do sistema e vamos trabalhar nisso.
Ou seja, está longe de ser uma reforma da justiça?
Sim, mas também não quer ser uma reforma da justiça, meu Deus, não quer ser isso.
Só que já andamos há alguns anos a falar nisso.
Vamos lá ver, nessa perspetiva a reforma da justiça faz-se todos os dias.
Acha que sim?
Acho que sim, todos os dias. Todos os dias, as instituições judiciais são os órgãos do Estado que mais atos praticam, são milhões de atos todos os dias.
O senhor não acha que faz falta uma reforma da justiça em Portugal?
Eu não acho que faz falta uma reforma da justiça, se nós respondemos em geral. Temos é de verificar em cada momento quais são as dificuldades que temos e como ultrapassar essas dificuldades, mas, neste momento, essas dificuldades não são do sistema, nem de princípio, são de ação, e se se lerem as 88 medidas, com exceção de uma, vê-se que são sugestões de ação para este problema, para aquele problema, para aqueloutro problema. Portanto, é preciso colocarmos alguma ordem, algum contexto orientado em tudo isso; são ideias muito interessantes, umas mais imediatas, outras menos imediatas, mas que, evidentemente, precisam de ser trabalhadas. Quem teve intervenção até agora neste exercício, com todo o empenho, com toda a dedicação foram as associações sindicais, neste momento é o tempo, tal como disse na quinta-feira, das instituições pegarem também neste trabalho, aproveitarem-no e fazerem aquilo que têm de fazer, ou que devem fazer, com a sua própria análise.
A maior parte das soluções propostas não implica nenhuma reforma nem nenhuma alteração legislativa, por exemplo. Portanto, não há aqui um problema de reforma da justiça. Reforma da justiça em quê? Em quê? Se nós temos uma justiça que relativamente a todos os critérios fundamentais de apreciação da qualidade, sejam do âmbito do Conselho da Europa, sejam até os critérios de qualidade do Banco Mundial evidentemente isso depois também tem outras perspetivas que um dia poderíamos discutir, mas que nos levariam muito longe , corresponde a todos os critérios. Temos é de ver a cada momento se não podemos responder melhor a esses critérios ou a um ou outro desses variadíssimos critérios de avaliação da qualidade. Isso é que me preocupa, mas não é um problema de reforma, é um problema de trabalho todos os dias e, por isso, de nos reformarmos também todos os dias.
Preocupa-o que agora esse trabalho de visão de conjunto, de dar algum sentido sistémico às propostas que estão na mesa, passe para as mãos do poder político?
Evidentemente que o poder político conhece os documentos, poderá trabalhar nos documentos. Eu estou a colocar a questão ainda num outro momento e num outro plano, acho que agora são as instâncias e as instituições judiciais, a começar pelo Conselho Superior da Magistratura, pela Procuradoria-Geral da República e pela Ordem dos Advogados, a trabalhar esses elementos. O poder político pode, evidentemente deve, olhar para tudo isto, mas também há um dever que eu creio que as instituições vão tomar a seu cuidado e vão analisar todo este trabalho e dar-lhe a forma institucional que tenha de ser dada, e que eventualmente deva ser dada, para depois facilitar a análise e as leituras que o poder político deva fazer.
O Presidente da República saltou um passo, apelou ontem a que agora fosse a hora de os partidos ouvirem os parceiros e
Não interpretei assim, não interpretei assim as palavras do senhor Presidente da República. O senhor Presidente evidentemente tem por suposto que a análise política trabalhe sobre documentos que sejam também preparados no âmbito das instituições judiciais, os Conselhos e a Ordem dos Advogados.
Tendo em conta aquilo que acabou de dizer, que a reforma da justiça se faz todos os dias, e juntando essa sua declaração com outra que fez há quase um ano o país não pode andar a jogar um jogo de reformas na justiça , a verdade é que cada vez que muda o Governo
Foi uma expressão de retórica, mas que se compreende muito bem.
A verdade é que cada vez que muda o Governo, não sei se se faz uma nova reforma da justiça, mas mudam-se várias coisas, não só na justiça como noutros setores. Que avaliação é que faz das alterações que foram introduzidas pelo atual Governo, quer na administração, na máquina da justiça, quer nos Códigos?
São pequenas alterações, todas em consequência da transposição de normas comunitárias, algumas de harmonização. É a tal reforma contínua, sobretudo desde Lisboa [Tratado de Lisboa] a União tem algumas competências também em matéria penal e eu, relativamente a isso, tenho as minhas distâncias, porque uma coisa são os princípios, são as grandes ideias, outra coisa é estarmos a copiar determinações penais com determinadas características sem respeitar a idiossincrasia de cada sistema jurídico e, portanto, posso pensar se não for além daquilo que devo dizer que, por vezes, pode haver aí um problema de subsidiariedade em relação ao princípio de subsidiariedade em matéria penal.
O que se tem feito é isso. Quanto ao resto, concordo com o que este Governo tem feito e com toda a dinâmica e a atenção da senhora ministra da Justiça, que conhece muito bem os problemas, dada a sua vivência de distintíssima magistrada. Neste momento, como sabem, o seu lugar é de juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, e para quem ache isso estranho digo que desde 1883 houve 30 ou 31 juízes conselheiros do STJ que foram ministros da Justiça, portanto, não é uma novidade.
A reorganização judiciária, nunca lhe chamei reforma pois há matrizes que são comuns, permanentes, que fazem parte da nossa idiossincrasia histórica, portanto é um problema de "rearrumação", de reformulações, não são propiamente reformas. O que se fez agora foi caminhar num outro sentido de proximidade, que eu sempre tenho escrito e defendido, o que foi feito agora pela senhora ministra da Justiça foi inteiramente no sentido do que eu tinha escrito, nomeadamente num texto de 2015 que foi o conjunto da minha experiência depois de acompanhar uma delegação do Conselho Superior da Magistratura e ter visitado e falado com todos os juízes de todas as 23 comarcas. Exercício que vamos repetir agora nesta segunda fase, já temos um programa detalhado de visitas com o Conselho Superior da Magistratura a todas as 23 comarcas.
A justiça portuguesa está a travar uma espécie de braço de ferro com o Governo angolano a propósito do processo que envolve o ex-vice-presidente de Angola, Manuel Vicente. Obviamente não lhe vou pedir para falar do caso, mas acha que tem havido uma boa gestão de todo este processo?
Se eu me pronunciasse sobre isso já estava a falar do caso. [risos]
Mas acha que o respeito pela autonomia dos dois sistemas judiciais, quer o português quer o angolano, deve ser um valor absoluto e deve sobrepor-se a outros interesses do Estado, nomeadamente nesta questão, ao interesse diplomático e à política externa?
Como digo, se me pronunciasse sobre essa questão estava a pronunciar-me sobre o caso concreto porque estamos a falar não em questões de princípio, mas a propósito de um caso concreto. Quanto a isso apenas tenho a dizer que eu próprio faço, na medida das minhas possibilidades, aquilo a que chamo e muita gente chama diplomacia judicial, integramo-nos em vários espaços, temos relações bilaterais mais próximas com certos sistemas judiciais com que temos relações de confiança. Na minha perspetiva, isto é, na prática do STJ quanto ao seu modo de considerar e de trabalhar as suas relações internacionais.
Quanto ao resto não me pronuncio porque, dadas as circunstâncias e o modo como a questão está colocada, não está colocada como uma questão de princípio, mas a propósito de um caso concreto.
Mas não lhe custa dizer publicamente que o respeito pela autonomia é uma estrada com duas faixas, uma para cada lado?
Em termos gerais é evidente que o respeito pela autonomia tem de ser mútuo.
Vamos passar a outro assunto que tem marcado a atualidade. Há pouco estava a ouvi-lo a elogiar a atual ministra da Justiça, acha que Francisca Van Dunem foi imprudente na forma como abordou a renovação ou não da atual Procuradora-Geral da República?
Não me peça, por favor, que comente as declarações da senhora ministra da Justiça, não vou fazer isso. Não vou fazer nenhum juízo, nada.
Não comentando as declarações da ministra da Justiça, não tem nenhuma dúvida sobre que interpretação que faz da lei que estabelece os limites a um mandato da atual Procuradora-Geral da República?
Também não me vou pronunciar sobre isso, qualquer coisa que eu dissesse teria sempre uma outra leitura. É óbvio que tenho a minha própria interpretação, mas é minha, não necessito de me pronunciar sobre ela.
O seu mandato, por exemplo, é um mandato de cinco anos não renovável. Em termos abstratos, o da Procuradora-Geral da República também deveria ser não renovável?
Não é questão que me deva ser colocada, até porque são situações efetivamente diversas. O sistema de nomeação do PGR é o de uma nomeação através do poder político, no STJ o presidente é eleito pelos juízes, portanto não tem nada a ver uma coisa com a outra.
[citacao:A lei tem solução para as fugas ao segredo de justiça, não sei porque é que não é cumprida]
Tem falado, por vezes, dos megaprocessos. Não vou referir quais são, toda a gente sabe quais são, estes casos melhoram ou pioram a perceção que o cidadão comum tem do funcionamento da justiça?
Numa parte melhoram, numa parte significativa pioram.
Melhoram, porque os cidadãos sentem que há uma atuação firme da justiça e das suas instituições e que estas são rigorosas e independentes, e isso é bom para todos, é bom para o sistema democrático, é bom para os cidadãos.
Pioram, porque além de certo limite o tempo conta e hoje vivemos, como sabe, numa época de grande velocidade, a começar pelo vosso tempo, o tempo mediático que é de urgência, o do momento, senão passa. O da justiça não pode ser assim, mas há também aquilo que se chama, por vezes, a necessidade de tempo e de alguma prudência nos processos ou nos procedimentos democráticos de deliberação e, hoje em dia, o tempo é tão urgente, corre tão depressa que os cidadãos podem começar a sentir alguma falta de paciência com o tempo dos procedimentos democráticos de deliberação. Há cientistas da política que falam do cansaço da democracia, por isso mesmo. Temos de ter cuidado com isso e os tempos acabam, por vezes, por causar alguma má imagem e alguma ideia que não é positiva nos cidadãos, por isso há uma ideia positiva e uma ideia negativa. Pode ser paradoxal, mas não é paradoxal porque as coisas têm um ponto de encontro, têm uma linha de encontro.
Agora, se me permitem, vou deixar a minha perceção sobre as perceções. E ela é que as coisas correm, por vezes, de tal modo que a grande crítica que neste momento se faz à justiça tem a ver com a gestão dos megaprocessos, mas como disse na quinta-feira, as coisas complexas ou hipercomplexas não têm soluções simples. Depois também é preciso desmontarmos algumas coisas que correm por aí: nenhum sistema, em nenhum lugar, até hoje conseguiu gerir melhor do que nós, de uma forma que os cidadãos compreendam em termos de tempos, os chamados grandes processos. Ainda hoje estive a recordar umas leituras que tenho acompanhado interessa-me também a informação que temos, não é uma informação inside, mas é uma informação através da comunicação e da imprensa, que normalmente é de referência , por vezes diz-se por aí "Ah, isto connosco são anos, o Madoff foram seis meses!", não foram. As autoridades americanas já andavam a investigar o Bernard Madoff desde 1992, foram 15 anos, 15 anos!
Mas não se soube nada da investigação até que ele foi detido e, sobretudo, ele não foi detido para ser investigado.
Sabia-se, sabia-se. Portanto é preciso que também tenhamos a noção. O problema, e já o disse também uma vez, é saber se o que hoje temos estou a fazer uma análise geral, não estou a fazer nenhuma crítica a ninguém e, muito menos, a nenhuma das magistraturas , se, por vezes, fossem cumpridas as regras de conexão de processos do Código de Processo Penal, artigos 23º e 24º ou 24º e 25º, se não me falha aqui a memória, haveria tantos megaprocessos ou se os processos não seriam repartidos segundo a regra de conexão de processos. É óbvio que isso depois tem os riscos de problemas de prova, de decisões contraditórias, eventualmente, portanto é tudo uma análise de riscos, de qual é o pior risco, se é a separação de processos com risco de decisões contraditórias ou é um único processo sem risco de decisões contraditórias, mas mais demorado.
Relacionado com este tema, sabia-se que o Madoff estava a ser investigado, mas não se sabiam detalhes do processo. Sente-se confortável com a constante fuga de informação para a comunicação social de pormenores de processos, de processos que estão ainda em fase de investigação, de pormenores de escutas, com transcrições de escutas e mesmo com vídeos de interrogatórios?
Claro que me sinto muito desconfortável. A lei tem solução para isso.
E porque é que não é cumprida a lei?
Não sei, não sei. Por um lado pode haver circunstâncias específicas que nós hoje não temos muito a perceção disso, que tem a ver com a circunstância de colegas vossos serem assistentes nesses processos e, portanto, conhecerem o que está no processo.
Não devia ser permitido?
Eu tenho algumas dúvidas e vou dizer aqui o que escrevi numa obra coletiva que tenho com outros senhores juízes conselheiros, que é um comentário ao Código de Processo Penal, e coube-me a mim fazer o comentário a essa disposição do Código de Processo Penal. Eu disse que, nalguns casos, poderia haver aí um abuso do direito de se constituir assistente. Agora, também há aí outra questão que é a relatividade do chamado segredo de justiça; como disse a senhora Procuradora-Geral e eu concordo já o disse na terça-feira num encontro muito interessante que tivemos no Supremo Tribunal de Justiça com jovens , hoje em dia, o nosso regime de segredo de justiça, que é excecional, a regra é a publicidade, depende do juiz de instrução e do Ministério Público, portanto, o que se protege é a investigação e mais nada, tudo o resto, a reputação, a honra, tem outros meios de proteção. Nomeadamente, uma ação especial do Código de Processo Civil, de exercício de proteção imediata de direitos fundamentais que eu praticamente nunca vi utilizar.