Síndrome: a tragédia dentro de cada um
O movimento dos pés levanta uma poeirada. O palco está coberto de terra, troncos, folhas de papel, pedrinhas. "Restos", explica a coreógrafa Olga Roriz. Restos de casas, restos de vidas, restos também do anterior espetáculo, Antes que matem os elefantes, afinal, este Síndrome, que hoje se estreia no Teatro São Luiz, em Lisboa, é uma espécie de continuação.
Tudo terá começado há mais de dois anos, quando Olga Roriz, tocada pelas imagens dos refugiados que chegavam à Europa ou que morriam tentando, decide trabalhar sobre esse tema. Foi a Atenas, esteve num campo de refugiados e no porto de Pireus, onde os migrantes chegavam, exaustos após a travessia marítima. E foi olhando mais além, para a outra margem, para a raiz do problema, que o espetáculo deixou de ser sobre refugiados e passou a ser sobre a guerra na Síria e a destruição de Aleppo. Em Antes que matem os elefantes, os intérpretes estavam num apartamento semidestruído, abrigo frágil, o chão coberto de pedras, a morte iminente.
A guerra não acabou e a verdade é que Olga Roriz continuou a querer falar dela. "Mas falar apenas da guerra na Síria. Queria fazer um zoom-out, sair dali e passar a uma problemática mais global, era isso que faria sentido agora." Foi assim que começou a nascer Síndrome.
No palco está o mesmo grupo de bailarinos - André de Campos, Beatriz Dias, Bruno Alexandre, Bruno Alves, Carla Ribeiro, Francisco Rolo e Marta Lobato Faria - e o primeiro trabalho foi de trazer as memórias dos Elefantes e encontrar nelas novas dramaturgias. "A ideia inicial era começar naquele apartamento, como se o prédio tivesse desabado sobre ele. Mas, depois, as coisas foram-se esvaziando." A coreógrafa pediu então aos intérpretes que trouxessem alguns objetos, imaginando aqueles que trariam consigo se tivessem de deixar a sua casa. Alguns foram procurar por entre os muitos adereços da companhia, e foi assim que surgiram as malas, a cadeira, os livros, os baldes. Os tais restos.
No fim de contas, o essencial dos Elefantes passa para Síndrome sobretudo através dos corpos dos bailarinos. "Apesar de estarmos a começar uma coisa nova, era inevitável que o peso desse passado passasse para aqui", explica Olga Roriz. "Podia até ser interessante um dia ver os Elefantes e depois o Síndrome - e perceber que aquelas pessoas que estão aqui são as que sobreviveram dali", propõe.
Aquelas pessoas que estão no palco são, elas mesmas, uns restos. "Procurámos aquele momento, após uma catástrofe, em que tu não sabes onde estás, não sabes o que estás a fazer, não sabes para onde te hás de virar. Essas sensações que tens após uma perda, seja do que for - de pessoas, de bens, de empregos. Pode ter sido uma catástrofe natural ou não, pode ter sido uma guerra ou um grande incêndio como este que vivemos agora [Pedrógão]. Esse é um momento comum, e todos nós, seres humanos, cada um de nós à sua maneira, vai lidando com ele e avança - uns lamentam-se, outros reivindicam, outros andam para a frente de um modo muito positivos, outros ficam completamente paralisados." O Síndrome do título não se refere, portanto, a uma doença específica, mas a um "sinal maligno", explica Olga Roriz: que nos leva - com a ajuda da música tristíssima e linda de Arvo Pärt - para um esvaziamento. Um estado mórbido. Um lugar sem esperança.