Simular ou salvar vidas?
Depois de ver o Milagre no Rio Hudson lembrei-me de outro filme com Tom Hanks que, poderão dizer, em nada se assemelha a este esplendorosamente sóbrio retrato que amanhã chega às nossas salas. Falo de You"ve Got Mail (1998). Quão delirante é ir a uma comédia com Meg Ryan buscar a ligação com o drama de Clint Eastwood? Veremos depois de me explicar. Há uma cena do novo filme em que Sully (Hanks), piloto do avião que "aterrou" no rio Hudson, em 2009, ao responder a uma comissão de inquérito, põe em causa a credibilidade das simulações que demonstravam ser possível naquela situação aterrar em solo firme, dizendo simplesmente que daqueles exercícios virtuais está ausente o fator humano. Ora, em You"ve Got Mail há também toda uma virtualidade a ser escavada, na troca de e-mails entre Hanks e Ryan, para se chegar ao fator humano, que se traduz depois num romance. Do mesmo modo, ainda em Milagre no Rio Hudson, a relação de Sully com a mulher (Laura Linney) fica reduzida à chamada telefónica... Não estarão aqui concentrados suficientes vestígios de um cinema que, de uma forma ou de outra, procura salvar as suas personagens da ditadura tecnológica? Será também essa a redenção que se agrega ao desejo da verdade? Tom Hanks, tão engomado no seu fato de piloto quanto amarrotado na consciência - pela angústia que as simulações lhe causaram -, traz-nos a melhor composição do cinema de Eastwood desde Gran Torino (2008). Ele é senhor de um semblante que controla a humanidade do filme (também em termos concretos, porque salvou 155 passageiros) na mesma proporção em que o olhar de Eastwood nos confronta, de forma sábia e insistente, com o absurdo da sociedade tecnológica. Eis o homem em tempos de dígitos. É disso que nos fala Milagre no Rio Hudson, no pleno domínio de uma linguagem clássica.
Crítica