Simpatizante com o extremismo xiita, filho de libaneses: quem é o atacante de Rushdie?
Quando Hadi Matar nasceu, na Califórnia, filho de emigrantes oriundos de uma pequena aldeia no Líbano, já passara quase uma década sobre a fatwa do ayatollah Khomeini, então guia supremo do Irão, a apelar à morte de Salman Rushdie após a publicação, no ano anterior do seu livro Os Versículos Satânicos. Este sábado, o americano de 24 anos, que se mudara há pouco temo para Fairview, New Jersey, foi acusado de tentativa de homicídio por na véspera ter esfaqueado o escritor britânico-americano nascido em Bombaim, durante um evento no estado de Nova Iorque. Ouvido em tribunal, Matar negou a tentativa de homicídio. Levado logo para o hospital, Rushdie continuava este sábado à noite em estado grave, ligado ao ventilador e incapaz de falar. Segundo o seu agente literário, deverá perder um olho, tendo sofrido ainda lesões no fígado.
Apesar de a polícia ainda não ter apontado o motivo por detrás do ataque contra o escritor de 75 anos, a NBC News citava fontes policiais segundo as quais um primeiro exame às redes sociais de Hadi Matar terá revelado que este simpatizava com extremistas xiitas e com os Guardas da Revolução iranianos, considerados como uma organização terrorista pelos EUA, que em 2020 abaterem o seu líder, o general Qassim Suleimani no aeroporto de Bagdad, no Iraque. Segundo a NBC News, as autoridades terão encontrado fotos de Suleimani numa app de mensagens que pertencia a Matar. O atacante terá agido sozinho, acreditam as autoridades.
Segundo o major Eugene J. Staniszewski, da polícia estadual, não era ainda claro se Matar tinha cadastro. As autoridades estavam a analisar uma mochila que o atacante deixou na Chautauqua Institution, onde decorria o evento com Rushdie para o qual o atacante tinha comprado bilhete. Segundo Kathleen Jones, uma das testemunhas citada pela SkyNews, Matar estava vestido de preto e com uma máscara preta quando se esgueirou até ao palco onde esfaqueou Rushdie no pescoço e abdómen, tendo causado ferimentos no entrevistador. Fontes citadas também pela SkyNews avançam que Matar teria uma carta de condução falsa do estado de New Jersey. A polícia e o FBI tinham vedado o acesso a sua casa, onde decorriam buscas.
Defensores da liberdade de expressão e dissidentes acusaram as autoridades iranianas de serem moralmente responsáveis pelo ataque contra Rushdie, uma vez que o Irão nunca revogou a fatwa emitida pelo Khomeini. Apesar de em 1998 as autoridades iranianas terem anunciado que não apoiam o decreto que defende a sua morte.
Contudo, o sucessor de Khomeini, o guia supremo Ali Khamenei, deixou claro nos últimos anos que a ordem segue vigente. Segundo a AFP, uma resposta a uma pergunta formulada no seu site oficial, Khamenei.ir, afirmava, em fevereiro de 2017, que a fatwa continuava válida: "O decreto mantém-se tal como foi emitido pelo imã Khomeini". Além disso, a conta do guia supremo no Twitter terá considerado em 2019 a fatwa "sólida e irrevogável".
Num momento delicado para Teerão, que está a avaliar a hipótese de voltar às negociações com as grandes potências para recuperar o acordo de 2015 sobre o seu nuclear, as reações ao ataque contra Rushdie no país variavam entre o silêncio das autoridades e as manifestações de apoio. "Alegrou-me muito ouvir a notícia. Seja quem for o autor [do ataque], beijo a sua mão [...] Maldito Salman Rushdie", disse à AFP Mehrab Bigdeli, de 50 anos. Nas livrarias da rua Enghelab em Teerão, Os Versículos Satânicos está proibido, mas não outras obras de Rushdie como Vergonha, cuja versão em persa foi premiada pelo Estado iraniano em 1985. "Salman Rushdie escreveu um livro e, segundo o imã Khomeini, a sua execução estava autorizada porque havia expressado blasfémias no seu romance. Fiquei feliz com a notícia [do ataque]", garantiu Ahmad, um dos estudantes que por ali abundam, devido à proximidade com a Universidade.
Embora as autoridades do Irão não tenham reagido oficialmente, o principal jornal ultraconservador do país, Kayhan, deu os parabéns ao autor do ataque: "Felicitações a este homem corajoso e consciente do dever que atacou o apóstata e depravado Salman Rushdie em Nova Iorque", escreveu a publicação, cujo diretor é designado pelo ayatollah Khamenei.
Nascido numa família de muçulmanos não praticantes, Rushdie ganhou fama mundial com o seu romance Filhos da Meia-Noite, em 1981. Esta metáfora sobre a independência sangrenta da Índia e do Paquistão valeu-lhe o prémio Booker. Mas foi com Os Versículos Satânicos, de 1988, que a sua vida mudou para sempre. Depois da fatwa, passou nove anos escondido, saltando de casa em casa e vivendo sob o pseudónimo Joseph Anton, que mais tarde daria nome ao seu livro de memórias em que relata essa vida em fuga.
A fatwa nunca foi oficialmente levantada, mas nos anos 2000 Rushdie acabou por ir saindo da sombra aos poucos. Numa entrevista dada à revista Stern duas semanas antes do ataque e que ainda não fora publicada, o escritor lembrava que a fatwa tinha décadas e dizia ter uma vida "relativamente normal".
helena.r.tecedeiro@dn.pt