Simon Mann: Quem ousa nem sempre vence

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Guiné Equatorial. Ex-oficial britânico, aluno de Eton, nascido na classe média-alta, Simon Mann deixou-se enfeitiçar pelo 'outro lado' da profissão de armas e está a pagar o preço dessa opção. Um preço que pode ir até aos 30 anos de prisão

Como é que um oficial de um dos regimentos de elite de Sua Majestade britânica e comandante de um destacamento de operações especiais está, em Junho de 2008, no banco dos réus num tribunal de Malabo, capital da Guiné-Equatorial, a ser julgado por tentativa de golpe de Estado? Pela mesma razão que participou, em 2002, num filme sobre o massacre do Domingo Sangrento na Irlanda do Norte. Por uma estranha ambição de aventura, ousadia e um olhar talvez romântico sobre a profissão das armas. O que pode tornar-se temerário até à imprevidência.

E uma tentação de quem faz da sua vida a profissão das armas é a dos conflitos malditos, travados em lugares incógnitos por combatentes sem rosto: os mercenários. Apresentado por alguns amigos como misterioso, discreto, a expressão impassível de um jogador de póquer, Simon Mann quis jogar este jogo. Fez a opção natural para quem nasceu sem ter de se preocupar com nada.

Filho de um empresário de sucesso e famoso pelos seus feitos num dos desportos nacionais, o cricket, estudou numa das escolas da elite, Eton, e inscreveu-se na Academia de Sandhurst, o caminho certo para desenvolver laços com personalidades indispensáveis para uma carreira de sucesso. Nas armas ou nos negócios.

Tudo indicava que seria nas armas. Nomeado oficial nos Guardas Escoceses (The Scots Guards), um regimento de prestígio e história, não ficará aqui muito tempo. Faz provas para o corpo de operações especiais do exército, o Special Air Service (SAS), onde permanecerá até 1981. Uma década depois, o comandante das forças britânicas na primeira Guerra do Golfo, general Peter de la Billière, chamou-o para participar na campanha. No final, é um dos fundadores de uma empresa de segurança que não vai passar despercebida, Executive Outcomes (EO).

Desmantelada em 1998, a EO adquiriu especial protagonismo no conflito angolano e noutros pontos de África, em particular em países com importantes jazidas de minérios. Esta coincidência leva a alegações de envolvimento com a empresa de diamantes sul-africana De Beers, o que foi desmentido por ambas as partes. Para a história da época e dos conflitos em África, está documentada a estratégia da EO em garantir num conflito, em primeiro lugar, a segurança das áreas ricas em diamantes e em petróleo, como sucedeu em Angola. Na primeira metade dos anos 90, este país constituiu a sua principal frente de operações. Uma actuação que vai impor uma série de reveses à UNITA e privar este movimento do controlo de várias áreas diamantíferas.

Para entender o recente percurso de Simon Mann, recorde-se que são os sucessos - e respectiva publicidade - da EO, que vão forçar o Governo sul-africano a actuar em 1998, obrigando a empresa a cessar actividade. A vasta rede de contactos e actividades da EO vai dissolver-se num universo de novas empresas e de efectivos em busca de novas missões. Aparentemente, Mann, ainda na EO, funda uma nova "empresa militar privada", a Sandline International, com sede nas Baamas. A definição das suas actividades é todo um cartão de visita: "fornecer aos nossos clientes os melhores serviços militares para os ajudar a resolver rapidamente as questões de segurança, com o máximo de eficácia e o mínimo de impacto" - pode ler-se na sua página na Internet, quatro anos após a empresa ter sido desactivada.

"Quem ousa, ganha", a divisa do SAS, continuou a servir de inspiração a Mann, largos anos depois de deixar as operações especiais. No universo turvo da compra e venda de golpes de Estado em países de regimes autocráticos, o antigo responsável da EO e da Sandline aceita uma encomenda estranha, em condições pouco claras - há quem diga que nesta área se perde a noção da realidade à medida que se avança nos anos. Sucedeu com Bob Denard, estaria a suceder com Mann, sugeriu "alguém que sabia o que estava a passar-se", escrevia quarta-feira o The Daily Telegraph.

Segundo alegações feitas esta semana no julgamento, Mann aceita afastar o Presidente Teodoro Obiang Nguema em 2004. Uma operação que, repetiu-o quinta-feira, tinha o acordo tácito de Estados Unidos, Espanha e África do Sul. No golpe estariam interessadas várias companhias petrolíferas internacionais.

Washington, Madrid e Pretória desmentem tudo o que Mann afirmou em tribunal.

Mann foi contactado por Mark Thatcher, filho da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, a funcionar como intermediário de Severo Moto, o histórico opositor de Nguema, no poder desde 1979, que pretendia destronar este. Os fundos para a operação viriam de um outro tipo de personagem comum nestes círculos: o milionário enigmático. Ely Calil, um magnata do petróleo, filho de pai libanês e mãe nigeriana. Movendo-se na sombra, a vasta fortuna de Calil seria a fonte de financiamento: 15 milhões de dólares, segundo documentos exibidos no julgamento.

O plano era chegar a Malabo, neutralizar os fiéis de Nguema, esperar umas horas até Soto, que habitualmente reside em Espanha (está hoje preso em Madrid por tráfico de armas), ser levado por Thatcher para as Canárias, de onde seguiria para o Mali e daqui para a Guiné Equatorial.

Mann reúne um grupo de 70 homens e viaja de avião para África. Desembarca em Harare, capital do Zimbabwe, onde planeara adquirir armas. O regime de Mugabe não terá tido dúvidas para onde devia ir a sua lealdade. Por isso, quatro anos depois, Mann está sentado num tribunal em Malabo. Pela frente, uma pena de 30 de anos de prisão. |

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