"Sim, chef!" A moda dos dramas de cozinha
Mesmo sem ter visto, é provável que já tenha ouvido falar de Ponto de Ebulição, O Menu e The Bear. Dois filmes e uma série que nos últimos meses de 2022 marcaram o panorama de estreias, não só enquanto produções de sucesso, mas sobretudo pelo tema que as une: a cozinha profissional como território de ansiedade extrema, com protagonistas sempre à beira do colapso. Uma visão muito diferente daquela que nos foi dada ao longo dos anos por dramas populares como Julie & Julia, A Festa de Babette ou a animação Ratatouille, autêntico comfort food ao pé destes recentes exemplos que procuram, com abordagens distintas entre si, transmitir o pesadelo e o caos por trás de cada prato ou sabor refinado.
Pode dizer-se que esta revelação do lado pouco romântico das cozinhas de restaurante, vistas menos como espaço de prazer criativo do que como sala de pânico (ainda que não deixem de abrir o apetite ao espectador), tem um antecedente óbvio nos inúmeros concursos e programas de culinária espalhados pela televisão e plataformas de streaming. Foi uma questão de passar à etapa dramática, que combina os ingredientes do stress e intensidade reais com histórias e personagens cujos traumas justificam o convite para entrar na jornada extenuante - não é que seja algo inédito, mas nunca houve, de uma só vez, argumentos tão originais e eficazes centrados na vivência específica desse local de trabalho.
Descendo ao particular de Ponto de Ebulição, O Menu e The Bear, juntamos outras propostas que confirmam a tendência dos dramas de cozinha. Não necessariamente de alta tensão...
Onde ver: Filmin
Este filme britânico protagonizado por Stephen Graham (um ator sempre extraordinário) será mesmo o objeto mais exemplar do drama de cozinha como coreografia de stress até ao limite da exaustão. Tudo começa com a presença incómoda de um inspetor que baixa para 3 estrelas a classificação máxima de um restaurante londrino de prestígio. O chef (Graham), que nessa noite de trabalho já vinha lidando com problemas pessoais, tenta mudar o chip e pôr ordem na casa, enquanto se depara com as exigências de alguns clientes que vão baralhar o esquema quotidiano tornando-o especialmente falível... Desde a mesa onde se sentam um chef "amigo" e uma crítica gastronómica, até aos fundos da cozinha, passando pelo atendimento a uma família racista e um jovem casal de noivos, a câmara de Philip Barantini percorre a vida do restaurante como um bailado de dramas individuais, que mais tarde nos sugere a ideia de uma panela de pressão ao lume o tempo todo.
Para além da excelente combinação de situações a acontecer no mesmo espaço, é a proeza de filmar tudo sem interrupções, num único take, que torna a experiência tão concentrada e envolvente. Já para não dizer que acima de qualquer demonstração de talento do chef está o ritmo que o seu corpo consegue tolerar, ou não... O sucesso de Boiling Point traduz-se numa continuação em formato de série que se estreará este ano.
Onde ver: cinemas e Disney+
Assinado por Mark Mylod, um dos realizadores de Succession, O Menu tem uma afetação condizente com o seu próprio exercício de género: o terror é o tempero na manga de um thriller que quer fazer dos ricos o ingrediente especial da maior criação gastronómica de um chef. Ralph Fiennes, com suavidade malévola, interpreta esse mago e guru da cozinha rodeado de colaboradores crentes na sua arte, que recebe numa ilha privada um grupo de milionários mais ou menos tontos. A exceção nesse painel humano é uma jovem (Anya Taylor-Joy) que acompanha um verdadeiro apaixonado pela haute cuisine (Nicholas Hoult), sem saber exatamente ao que vai - e sem que a relação entre os dois seja aquilo que parece ao início.
Segue-se uma estranhíssima experiência de degustação, que vai ficando mais bizarra à medida que se sucedem os pratos, cada um a refletir o vazio artístico do ritual. São aconselhados a "não comer", como se isso fosse sinónimo de vulgaridade para os padrões espirituais de um chef, mas sim a descobrir o que significa sentir o sabor no palato... Se são capazes ou não, pouco importa. O jogo define-se desde cedo, e Mylod tenta que qualquer pequena reviravolta nos dê o gozo das refeições menos saudáveis.
Onde ver: Disney+
Foi uma das séries mais apreciadas do último ano, conseguindo fazer da energia caótica de uma cozinha pura matéria narrativa. Aqui o chef, Carmy, com a postura ferida de Jeremy Allen White, é alguém que pega nesse negócio de família - um restaurante em Chicago -, após o suicídio do irmão, para tentar mantê-lo aberto, ou dar-lhe um novo fôlego. Vem de Nova Iorque, onde trabalhou na diabólica alta-cozinha, e não está a processar bem a transição: por um lado, o trauma dessa experiência anterior não lhe sai da pele, por outro, a morte do irmão é um fantasma omnipresente, que se manifesta sobretudo nas horas críticas.
Carmy aguenta a barra o mais que pode, mas a explosão nervosa acabará por acontecer e a sua fiel equipa sai magoada de um dia em que a brutalidade do ritmo e das palavras consegue ser pior do que o normal... The Bear é sobre a tensão que existe no ecossistema da cozinha profissional, a sua vertigem e linguagem quotidianas, em episódios de meia-hora que sugerem o efeito de um brilhante curso intensivo. De resto, na sua discreta vibe rock "n"roll, este chef não está longe de Anthony Bourdain.
Onde ver: Filmin
Recente aquisição do catálogo Filmin, esta série sueca surge como um belo cruzamento de Succession e Downton Abbey - sem os diálogos afiados do primeiro, mas com a dinâmica bem oleada do segundo. A personagem principal chama-se Djurgårdskällaren e é um restaurante familiar cuja gestão cria atritos entre três irmãos: o mais velho, Gustaf, manteve o negócio durante a Segunda Guerra, com métodos ocultos, o do meio, Peter, que serviu no exército, regressa a Estocolmo no fim do conflito e quer resolver as trapalhadas do irmão, e a mais nova, Nina, também tem ideias modernas e jazzísticas para esse estabelecimento snob e tradicional.
A série começa em 1945, precisamente com o anúncio da capitulação alemã e a euforia gerada nas ruas e na cozinha do restaurante, por contraste com a quietude no espaço das refeições. E é assim que quase tudo se define ao longo dos episódios: na cozinha acontece o melhor e o pior, no ambiente do restaurante dos Löwander reina uma paz artificial. É na cozinha que Calle, um aspirante a chef, conquista Nina com uma iguaria preparada a meio da noite. A mesma cozinha que dará a este jovem muitas frustrações até conseguir ascender ao lugar que merece. Pelo meio há as intrigas de outras empregadas e da matriarca da família, que, em segredo, todas as noites ceia com o chef do seu restaurante, como dois velhos amantes... Enredos secundários que dão a The Restaurant um sabor elaborado, com pitadas de melodrama de época que nos prendem pelo gosto clássico. Por agora, estão disponíveis duas de quatro temporadas.
Onde ver: Netflix
Outra das estreias recentes, A Makanai - Na Cozinha da Casa Maiko está no extremo oposto dos dramas stressantes à volta dos tachos. Realizada por Hirokazu Kore-eda, esta série doce e reconfortante partilha de toda a filosofia do cineasta japonês em torno do tema da família, com personagens a construir a sua própria vivência doméstica ideal. Seguimos aqui duas adolescentes, amigas inseparáveis, que partem da sua aldeia natal para Quioto com a intenção de se tornarem maikos (aprendizas de gueixa). Porém, chegadas ao destino, se uma delas, Sumire, revela um talento inato para as técnicas culturais dessa arte feminina, a outra, Kiyo, não tem jeito nem para segurar um leque... A sua vocação é a culinária e descobre-a através de uma simples atração pelos afazeres da cozinha da casa onde agora vivem com outras jovens aprendizas. Num estalar de dedos, torna-se a "makanai": responsável por todas as refeições caseiras.
Cada episódio é uma lição de gentileza e amizade, envolta de sabores harmoniosos e nostálgicos, sem esquecer a dimensão performativa deste universo de tradições, entre laboriosos penteados, maquilhagem e espetáculo. Kore-eda filma tudo com uma imensa serenidade, que nos faz sentir em casa, bafejados pela melancolia e comédia próprias da vida familiar.
Onde ver: HBO Max
Eis outro título que nos leva para o registo aconchegante: Julia foi uma das estreias mais luminosas do ano passado. Um regresso, em moldes de série, à referência de Julia Child (1912-2004), autora do livro Mastering the Art of French Cooking e do programa de culinária The French Chef (com o seu estilo mítico de anfitriã), que granjeou a admiração de muitas mulheres americanas nos anos 1960/70. Meryl Streep deu-lhe vida em Julie & Julia, de Nora Ephron, mas é justo dizer que, neste caso, a interpretação da britânica Sarah Lancashire tem outro calibre, capaz de sustentar um drama desenvolvido só em torno da fascinante personalidade de Child, figura de pose desembaraçada e simpatia natural.
Depois de uma primeira temporada a retratar a ascensão desta pioneira e genuína entusiasta do ato de cozinhar, a sua história continuará a ser explorada num segundo capítulo da série, que vai chegar à HBO Max ainda este ano.
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