Shimon Peres: O homem dos mil rostos que lutou pela segurança e a paz em Israel

O último pai fundador de Israel e o homem que dotou o país com acordos de paz e o nuclear morreu ontem aos 93 anos após sofrer um acidente vascular cerebral a 13 deste mês
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"O povo judeu não sabe o que deve a Shimon [Peres]", desabafou o primeiro-ministro israelita David Ben-Gurion. Estava-se em dezembro de 1960 e Peres, número dois da Defesa, tentava que o Orçamento de Israel fosse aprovado sem pôr em causa a central nuclear de Dimona, construída em segredo com a ajuda da França. A luta foi renhida mas a poderosa comissão financeira do Knesset (Parlamento) cedeu dando a Peres nova vitória na luta pela segurança do país, objetivo primeiro da sua vida política. Hoje, 56 anos depois e horas após a sua morte aos 93 anos, o povo judeu descobre-se órfão do último pai fundador do Estado de Israel.

Em janeiro, após o primeiro acidente cardiovascular, Shimon Peres insistia na necessidade da paz com os vizinhos árabes, outro objetivo primordial da sua vida porque "complementa e reforça a segurança" do país. "Não se pode responder a uma facada com outra facada. Não penso que possamos viver se apenas continuarmos a tentar destruirmo-nos uns aos outros", garantiu a jornalistas israelitas. E adiantou: "Há duas coisas na vida que se as quisermos de facto alcançar temos de semicerrar os olhos: a paz e o amor. De olhos bem abertos, tenho a certeza de que ninguém se apaixonaria e não tenho a certeza de que alguém faria a paz. Mas, quando se compara, viver em paz e viver apaixonado, mesmo que não seja perfeito, é de longe a melhor escolha."

Figura incontornável da história de Israel, Peres foi um político que não deixou ninguém indiferente. Ao longo dos seus 70 anos de carreira integrou 12 executivos, foi ministro da Defesa, chefe da diplomacia, liderou governos e o próprio Estado. Também sofreu derrotas eleitorais para a liderança do partido e chefia do Estado, daí ser chamado de "mal-amado". Foi objeto de críticas, traições, ameaças; nada o abalou, nem os epítetos de "intriguista", "traiçoeiro" e "medíocre" que delatores, como Golda Meir, teimavam em colar-lhe ao nome.

Filho de uma família abastada de Vishneva, aldeia predominantemente judaica da Polónia, Shimon Persky (mais tarde Peres) foi uma criança religiosa por influência do avô materno; aos 9 anos queria emigrar para ser "agricultor de kibbutz". Em 1935, com 12 anos, Shimon, o irmão e a mãe juntaram-se ao pai, que emigrara três anos antes para a Palestina e instalaram-se em Telavive. A emigração salvou-os de serem vítimas dos nazis, como aconteceu com os seus familiares que ficaram na Polónia.

Aos 15 anos, já membro da Juventude Trabalhista, ingressou na escola agrícola de Ben-Shemen, a rampa de lançamento para o futuro político de Peres. Foi ali que a Haganah (organização paramilitar judaica) o descobriu, arregimentou e, em 1947, o fez responsável pela aquisição de armas e gestão dos recursos humanos; foi dali que partiu para fundar o kibbutz (comunidade agrícola) Alumot, a sul do lago de Tiberíades, Norte de Israel. Trabalhador compulsivo, para quem quatro horas de sono bastavam, foi ali que Ben-Gurion o descobriu e se tornou seu mentor.

Polaco e pai fundador do Estado de Israel, de que foi o primeiro chefe de governo, Ben-Gurion fez de Peres seu agente das missões difíceis. E este, que nunca vestiu uma farda militar como nunca perdeu o sotaque polaco, transformou-se no homem dos "mil rostos" na luta pela segurança do país. Nas suas missões usou estratagemas, charme, pressão, persuasão... Metódico, preparava cada viagem ao pormenor e nas reuniões, na maioria secretas, o "senhor Segurança" fazia amigos úteis para os "dias de chuva".

Para o "reservado e tímido" Peres a segurança de Israel ia para além da aquisição de material bélico a um leque inimaginável de países, desde a Alemanha Federal às ditaduras sul-americanas: havia que alargar as fronteiras e aumentar a população judaica; fez conluio com a França e Reino Unido para criar a crise do Suez que justificou Dimona e a ocupação do Sinai; após a Guerra dos Seis Dias (1967), defendeu e apoiou a criação de colonatos, "as raízes e os olhos de Israel", nos territórios ocupados do Sinai, Faixa de Gaza, Cisjordânia e montes Golã.

Na década de 1980, o "falcão" inflete à esquerda e "aposta na paz" com os vizinhos árabes. Negociou em segredo com o rei Hussein da Jordânia o "Acordo de Londres" (1987) sobre a soberania da Cisjordânia, rejeitado pelo então primeiro-ministro Yitzhak Shamir; criou canais com países muçulmanos (Turquia, Marrocos) e dialogou com pacifistas porque as "circunstâncias" mudaram e "a paz é um imperativo". Como chefe da diplomacia de Yitzhak Rabin, promoveu em segredo as negociações com os palestinianos que levaram aos Acordos de Oslo (1993) e lhe deram o Prémio Nobel da Paz a par do líder palestiniano Yasser Arafat e Rabin. Apesar de os seus críticos não o considerarem um homem de paz.

A morte de Rabin por um extremista judeu em 1994 foi um duro golpe. Peres disse, então, ter perdido o "irmão mais velho", passando a mensagem de que os dois responsáveis tinham ultrapassado a desconfiança que envenenou muitos anos das suas vidas políticas. E recusou antecipar as eleições porque, como disse ao DN, "não quis tirar partido da morte de Rabin". Ato cavalheiresco que lhe valeu a derrota.

O "romântico, que transbordava cultura e desejava ser amado pelos concidadãos", não se deixou intimidar pela derrota. Manteve-se ativo através do Peres Center for Peace, como deputado, e, em 2007, foi eleito presidente do país, de que é o último pai fundador. Nos sete anos de mandato, Peres perde Sonia, a mulher e mãe dos três filhos; é também nesse tempo que a maioria dos israelitas começa a olhá-lo como grande estadista, reputado em todo o mundo, e a considerá-lo como o "nosso Shimon"; a amá-lo.

A morte de Shimon Peres gerou uma vaga de condolências mundiais e de elogios ao reputado estadista que deixou como legado a luta pela paz entre Israel e os vizinhos. Amanhã, personalidades como o presidente dos EUA, Barack Obama, Hillary e Bill Clinton ou o Papa Francisco estarão no cemitério militar do Monte Herzl, em Jerusalém, para um último adeus. Portugal estará representado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. A presença do presidente Marcelo Rebelo de Sousa está "em análise", segundo fonte da presidência.

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