Sexo na deficiência
«FOI DIFÍCIL aceitar que sendo homem não tenho erecção.» Do outro lado do telefone, André Venda faz uma pausa de segundos e retoma. «Tentei dar a volta e consegui.» A história deste jovem de 21 anos não é única. Causa da paraplegia: acidente rodoviário. Quando o pneu rebentou naquela curva, a sua vida mudou. O rapaz de 19 anos, namoradeiro, ficou sentado numa cadeira de rodas, insensível do peito para baixo. Depois foi preciso reaprender tudo. A pensar, a existir. A viver um novo dia-a-dia, a fazer amor de outro modo.
Hoje, André sente-se totalmente autónomo. Aceitou falar à NS’ sobre uma matéria delicada (a sexualidade na tetra e paraplegia), porque lhe parece uma peça essencial e prioritária na reabilitação da doença – a perspectiva coincide aliás com as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) mas, em Portugal, o apoio clínico e psicológico nesta área tem ainda um longo caminho a percorrer.
«Até há pouco tempo, a sexualidade era ainda tabu no nosso país. Por isso, não admira que o tratamento do tema na deficiência fosse também complexo. Temos pacientes com uma lesão medular há mais de vinte anos que nunca falaram de sexualidade e vêm agora fazê-lo pela primeira vez», afirma a fisiatra Glória Batista, responsável pela consulta de Disfunções Sexuais Neurogéneas, criada em 2005, no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (Cascais).
Para Ana Garrett, psicóloga clínica que desenvolve um doutoramento sobre o tema na Universidade Fernando Pessoa (no Porto), a dimensão da sexualidade na reabilitação dos lesionados medulares em Portugal mantém-se «esquecida ou relegada para segundo plano. Como se fosse preciso tratar da vida e a vida não fosse prazer, fosse apenas coisas sérias, práticas, funcionais». O objectivo da sua investigação é criar modelos psicoterapêuticos para reabilitação da sexualidade em homens e mulheres, vítimas deste tipo de lesões. Para lá chegar, passa os dias no Rovisco Pais, o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro, que fica na Tocha (Cantanhede).
PARA ANDRÉ VENDA, o prazer sexual é agora psicológico. Está principalmente na cabeça. «Tenho-o, como antigamente, mas não se vê. Posições, toques, gestos, carinhos, é a isso que me dedico ao máximo. Na verdade, sinto que refinei a minha sexualidade», reconhece.
O testemunho optimista deste jovem da Bezerra (aldeia no distrito de Leiria) está intimamente relacionado com o acompanhamento da psicóloga Ana Garrett, mas não só. Há cerca de um ano, apaixonou-se. Estava ainda internado no Rovisco Pais, prestes a ter alta, quando conheceu uma estudante do curso de Fisioterapia, que estagiava no hospital. «Foi uma coisa muito rápida e muito forte. Estamos muito felizes os dois. Muitas vezes olha-se de outro modo para alguém com deficiência, apenas por falta de conhecimento. As limitações não são nada do outro mundo. Além de haver métodos para ajudar a criar a erecção, há outras coisas que fazem parte da sexualidade e que as pessoas tendem a esquecer. Somos um casal normal, fazemos o que os outros fazem. Podemos lá chegar de maneira diferente, mas chegamos», explica Marta Silva, 22 anos.
«As sequelas da lesão medular não são incompatíveis com uma vida sexual satisfatória. É possível ter e proporcionar prazer. A pessoa não deve esperar as mesmas sensações de antigamente, mas as experiências passadas são importantes, podem ser uma fonte reinspiradora desta nova sexualidade», defende a fisiatra Glória Batista. À NS’ explica que quase todos os doentes com lesão medular podem ter erecção («só que é reflexa, desligada do cérebro, ou seja, acontece quando menos se espera, e quando se quer, não existe»).
Para melhorar a função eréctil dos lesionados medulares, existem soluções terapêuticas, esse é aliás um dos objectivos da consulta que coordena em Alcoitão. Relativamente ao orgasmo, a especialista esclarece: «Trata-se essencialmente de um fenómeno córtico-cerebral. Ou seja, para ser percebido é necessária a integridade das vias nervosas sensoriais. Caso contrário, a informação de prazer não consegue chegar ao cérebro.» Como na lesão medular a comunicação é interrompida, desaparece a percepção do orgasmo, apesar de os doentes descreverem a persistência de uma sensação agradável, de alívio de tensão sexual. «Como transformar esta sensação num orgasmo (pseudo-orgasmo ou para-orgasmo)? É importante recorrer a fantasias e a algum imaginário erótico, para que esses graus satisfatórios de prazer possam ser ampliados», argumenta a fisiatra.
O NOME é fictício, pela delicadeza do tema. Chamemos-lhe Xavier. Xavier também é paraplégico, também teve um acidente de viação, também acredita que é essencial reaprender a sexualidade. Porque tem apenas 47 anos. Porque é casado há 25 e quer continuar a tratar a companheira como mulher, «não como enfermeira». Porque apesar dos dois anos em cadeira de rodas se recusa a aceitar que a vida esteja confinada. De costas para o sol que se põe no vasto pinhal onde fica o Centro de Medicina de Reabilitação Rovisco Pais, reflecte sobre a metamorfose do corpo, do desejo e do prazer pós-lesão. Ao seu lado está Paula, companheira de ginásio. Sem que se saiba ainda bem porquê, paralisou repentinamente: «Estava a jogar cartas com os meus filhos. Comecei a sentir as mãos dormentes e com frio. Fui tomar um banho e deitei-me. Só que não me levantei mais. Estive um ano na cama, sem sentir nada do pescoço para baixo.»
Hoje, caminha de canadianas, mas a recuperação é ainda complicada. Paula tem 42 anos, é divorciada há 15, mas «tinha uma amizade colorida» antes de adoecer: «Pus fim a esta relação há uns meses. Achei que não tinha o direito de privar aquele homem de uma vida normal. Sinto-me envergonhada do corpo, sem desejo, diminuída.»
Tanto para Xavier como para Paula, as sequelas da lesão na vida sexual e amorosa pesam bastante, mas as expectativas de reabilitação são diferentes. «É difícil. O prazer de antigamente já não está lá. Não tenho orgasmo! Mas fico feliz por permitir esse prazer à minha mulher. Aí, sim, sinto-me bem. De qualquer modo, acho que o meu acidente a afectou mais a ela do que a mim. Se calhar agora mimo-a um pouco mais. Não sei. Estou ainda em fase de descoberta e aprendizagem. De momento, a minha aposta é na questão auditiva, visual, no toque ou em outros estímulos, sem ser a obtenção de prazer pelo coito. Antigamente um abraço era irrelevante, agora não», diz Xavier.
Paula compreende, mas não consegue erradicar a sua falta de esperança. Xavier insiste. «É verdade que vocês desligam mais rápido. Não pensam tanto em sexo como os homens, mas não devia desistir dessa maneira. Aqui preparam-nos para sermos autónomos, mas isso não significa que sejamos solitários. E se a sexualidade não funcionar, qualquer relação fica em risco. Além disso, há aqui pessoas que são tetraplégicas e vão casar brevemente.»
Paula reconhece sentido ao discurso, mas continua a dizer que não com a cabeça. Ana Garrett, sentada na cadeira ao lado, interrompe o diálogo: «Quando a Paula terminou a relação estava a prever o abandono?» A resposta é negativa. Ainda assim, a especialista faz uma nota de rodapé: «Os estudos internacionais apontam para uma percentagem muito maior de separações quando as vitimas da lesão são mulheres.» Glória Batista concorda: «Costumamos dizer que o homem vê primeiro a cadeira de rodas e só depois a pessoa que nela está sentada.
Com a mulher é o contrário: vê primeiro a pessoa e só depois a cadeira. Tem uma visão mais emotiva. Quando temos mulheres muito incapacitadas, os seus maridos não devem ser os seus cuidadores, porque um homem tem muito mais dificuldade em despir este papel e, em seguida, vestir o de marido ou amante.»
Segundo a fisiatra de Alcoitão, «há muitos casos em que o casal se diz melhor, mais unido, depois da lesão. Lembro-me de um, em particular, até pouco diferenciado, que tinha uma vida sexual pouco rica antes do acidente. Alguns meses depois, a mulher dizia-se satisfeitíssima: “Ele até já me dá a mão.” Tinham mais tempo um para o outro. O marido dava-lhe mais atenção, valorizava-a mais. Via que tinha uma mulher, amiga, companheira, incondicionalmente junto dele, e a relação saiu fortalecida. É preciso fazer-se o enfoque nos afectos, comunicação, companheirismo, outras fontes de prazer que não a genitalidade».
«A SUA SEXUALIDADE? Já está a pensar nisso? Ora essa! Então? Isso agora não é importante! Vai haver alguns problemas, mas ainda é cedo para falar.» O relato foi feito a Ana Garrett pela esmagadora maioria de tetra e paraplégicos que participam no seu estudo (35 homens e mulheres, com média de 33 anos de idade). São observações feitas por médicos e fisioterapeutas, quando confrontados com a ansiedade e as dúvidas dos doentes relativamente ao futuro da sua vida sexual: «Infelizmente, para a maioria dos lesionados, o tema nunca chegou a ser abordado», argumenta a psicóloga.
Porquê? Porque não há sensibilidade para a importância do problema. Porque faltam profissionais especializados em reabilitação da sexualidade ao nível dos lesionados medulares. Porque se centra a recuperação na dimensão física e na autonomia e funcionalidade dos doentes.
De acordo com Ana Garrett, a intervenção ao nível da sexualidade deve acontecer no primeiro trimestre da reabilitação, começando por se fazer um mapa de zonas erógenas: «Já que os genitais poderão agora ter sensibilidade zero, é preciso perceber em que outras partes do corpo pode haver resposta erógena (a audição e a visão podem ser duas, muito importantes). Como 98 por cento da minha amostra tem relacionamentos (namoro, casamento, união de facto) é preciso chamar os companheiros e companheiras, envolvê-los activamente no processo.»
Segundo a psicóloga clínica, a parceira do lesionado oferece normalmente mais resistência no novo acto exploratório, por motivos socioculturais. Mas Ana Garrett sublinha que encontrou «mulheres “muito à frente”, algumas com 40 anos, e até de baixo nível cultural, que tinham muita necessidade de outro tipo de sexualidade. Para algumas já era tão difícil ter um orgasmo com penetração, que agora até é melhor. Infelizmente, também há o reverso da medalha: mulheres que se sentem aliviadas por o companheiro já não ter o desejo sexual que tinha antes da lesão. É raro, mas também acontece.»
Glória Batista explica que acompanha mulheres com lesões medulares, que são mães, trabalham, estão bem consigo próprias, nomeadamente a nível sexual.
Na consulta de Disfunção Sexual Neurogénea, em Alcoitão, os doentes são maioritariamente do sexo masculino, pela ocorrência mais frequente de acidentes de viação ou de trabalho, e porque as sequelas ao nível da sexualidade são mais visíveis nos homens – «ainda que as mulheres também sejam afectadas (anestesia dos órgãos genitais, diminuição da lubrificação vulvo-vaginal e alteração da percepção do orgasmo)», esclarece Glória Batista.
Testemunho
«Pertenço a duas minorias: sou gay e tetraplégico»
Francisco (nome fictício), 31 anos, vive no Porto e é técnico superior. Queixa-se de que a parte psicológica e a sexualidade foram completamente postas de lado na sua reabilitação.
«Sou gay e foi doloroso o meu processo de saída do armário (entre os 16 e os 18 anos). Quando comecei a conseguir aceitar a minha orientação sexual, tive o acidente e fiquei tetraplégico. Dos mamilos para baixo não tenho qualquer sensibilidade ou movimento voluntário. Mexo os braços, mas as mãos estão algo atrofiadas. Acabo por pertencer a duas minorias: sou gay e tetraplégico.
Uma lesão medular é uma alteração drástica na vida das pessoas e exige uma reabilitação multifactorial. O meu processo foi feito há 11 anos, no Hospital da Prelada, no Porto. Mas costumo dizer que não fiz reabilitação, só fisioterapia. A parte psicológica e a sexualidade foram completamente postas de lado, como se não houvesse necessidade de fazer uma reabilitação a esse nível.
Desabafávamos com os fisioterapeutas, mas apoio psicológico (institucionalizado), em que se pudesse falar destas questões, não havia. Era um deserto autêntico.
Ainda hoje continuo a ter dificuldade em ver-me ao espelho e aceitar a minha imagem corporal (tenho um bocadinho de barriga, pois não tenho movimento voluntário nos abdominais) – esta relutância agrava-se se pensarmos no culto do corpo que existe na comunidade gay, e que também é veiculado pela comunicação social.
O que me dá prazer é ver que dou prazer à outra pessoa. Os preliminares ganham uma enorme importância. Quando as coisas são feitas a correr quase nem as aproveitamos. Quando são graduais, ganham um outro valor. O beijo, a carícia, sentir o calor do corpo da outra pessoa, poder explorar, massajar, ser tocado onde tenha sensibilidade, tudo isso é muito importante.
É uma questão de aprendizagem. É como renascer. A pessoa tem de se readaptar ao seu novo corpo, ao nível da sexualidade e não só.»
Ana Garrett: «Descobre-se uma nova sexualidade »
A experiência da psicóloga clínica, investigadora da sexualidade nas lesões vértebro-medulares.
O que se pensa em geral, quando se fala de sexualidade na deficiência?
Se alguém está paralisado da cintura para baixo, não tem sexualidade – é isto que se pensa. Porque se acredita que a sexualidade existe no nosso corpo apenas da cintura para baixo [risos]! Crê-se, erradamente, que os lesionados medulares não pensam nisso, não têm desejo.
O que é para si a saúde sexual?
Muitas vezes julga-se que ter sexo quatro vezes por semana (com orgasmo) é sinónimo de saúde sexual. Não concordo. Para mim, saúde sexual é liberdade de pensamento, obviamente dentro dos limites do respeito pelo outro. Não obriga necessariamente à existência de parceiro(a), sendo tanto melhor quanto se possa projectar em alguém ou com alguém.
É portanto possível ser-se paraplégico ou tetraplégico e ter uma vida sexual saudável?
Claro que sim. Há uma reestruturação, uma descoberta da nova sexualidade. Na nossa sociedade é tudo muito falocêntrico. Mas depois da lesão deixa de o ser. Dá vontade de dizer que sendo tetra ou paraplégico se descobre a verdadeira essência da sexualidade. Descobre-se uma nova atitude exploratória.
O que cabe dentro desse carácter ilimitado da sexualidade?
Olhar, cheirar, ouvir, tocar. Dar importância a coisas a que não se dava antes. A cabeça viaja tremendamente. Passa-se a ter o pénis e a vagina dentro do cérebro. O preliminar começa de manhã quando se acorda e acaba quando a pessoa se deita. Quando não se tem função sexual, os preliminares são a vida, o quotidiano. Eu gosto mais de falar em sexualidade e menos em função sexual, porque as pessoas não estão muito alerta para esta diferença. Continuamos a confundi-las. Pode ter-se uma actividade sexual com alguém e não se ter sexualidade com essa pessoa. É apenas actividade sexual. Só isso.
Glória Batista: «Há verdadeiras redescobertas, mas também há situações dramáticas»
Opiniões da fisiatra responsável pela consulta de Disfunção Sexual Neurogénea, em Alcoitão.
Quais os motivos mais recorrentes na procura da consulta?
Melhorar a função eréctil, ser pais, entender melhor as coisas. Na primeira consulta vêm sozinhos, nas seguintes sentem necessidade de que a companheira oiça.
Há ainda doentes medulares que recusam a consulta?
Sim, outros que só vêm na véspera de terem alta. Depende dos traços de personalidade e das situações, da idade. Algumas destas pessoas nunca falaram sobre sexualidade com ninguém. Só conseguimos ajudar quem está capaz de avançar neste caminho. Estas pessoas podem ter perdas de urina ou fezes, durante a relação sexual, também não se movimentam como antes (um homem já não está nas posições em que costumava estar, parece que fica mais passivo, mas isso não deve interferir na sua maneira de se sentir como homem). Se a companheira é suficientemente receptiva, há verdadeiras redescobertas, mas também há situações dramáticas, de abandonos.
E como se melhora a função eréctil?
Com terapêutica medicamentosa, em doses controladas, testadas com a pessoa, seja em comprimidos seja sob a forma injectável. Também há sistemas de vácuo, mas devem ser usados com cuidado, pois pode ser perigoso caso o equipamento não seja adequado (se comprado em sex-shops) ou se for mal usado.
A parentalidade é muito dificultada pela lesão?
A lesão medular diminui a qualidade dos espermatozóides. E normalmente não se tem ejaculação (são muito poucos os que têm), mas em determinados níveis de lesão conseguimos, com um aparelho, o vibroestimulador, provocar uma ejaculação reflexa. Permite avaliar a qualidade do esperma e congelá-lo para uma inseminação in vitro. Em Alcoitão, só avançamos até à fase da recolha e referenciamos para uma consulta de infertilidade. Esse esperma pode também ser introduzido com uma seringa na vagina, durante o período fértil. Temos dois casos de gravidez que resultaram assim. Mas não é frequente. Relativamente às mulheres com lesão medular, não há problemas para engravidar.
Assistentes sexuais em bordéis
«Na Holanda, recentemente, o governo colocou em prática um projecto de formação para assistentes do sexo (nós designamo-las por prostitutas). Já existe também em outros países europeus, nomeadamente na Dinamarca. É extremamente interessante. Têm de aprender o que são as variadíssimas lesões e deficiências. Depois têm hipótese de receber estas pessoas. Nós estamos a milhas de distância desta mentalidade», argumenta Ana Garrett.
O Clube Dutch Desires é um bordel projectado para atender deficientes físicos e motores, que ambiciona ser uma referência em termos de serviços do género na Holanda.