Seu nosso

«Quando as ruas se levantam, os representantes são obrigados a ouvir. Os portugueses já fizeram uma revolução pela democracia e agora têm de fazer outra pela dignidade.» Na semana em que regressa a Portugal, conversa com Seu Jorge, músico brasileiro que, muito antes de se tornar um fenómeno, foi sem-abrigo e viveu nas favelas.
Publicado a
Atualizado a

«Chega de não ter casa para morar. Chega de não ter grana para pagar. Chega. O povo não está brincando. Não é pelos vinte centavos que estamos lutando.» Esta é a letra de Chega, a canção que Seu Jorge compôs com os músicos Gabriel Moura e Pretinho da Serrinha. Foi lançada em junho e espalhou-se como uma infeção pelas redes sociais, ao mesmo tempo que uma onda de protestos contra o aumento dos transportes públicos varria o Brasil e se transformava num impressionante levantamento popular contra a má gestão dos fundos públicos e corrupção da classe política.

O cantor e ator brasileiro chega esta semana a Portugal para três concertos, com meia dúzia de gritos de contestação na bagagem. Na sexta, dia 11, vai estar na Portimão Arena, sábado atua no Multiusos de Guimarães e domingo dá música ao público lisboeta, no Pavilhão Atlântico. O prato forte são os temas do último álbum, Músicas para Churrasco - volume 1, lançado no final do ano passado e vencedor de um Grammy Latino. Mas também há espaço para os clássicos. E esses são músicas como Burguesinha ou Problema Social, verdadeiras crónicas da desigualdade: «Tentei ligar pra você. O orelhão da minha rua estava escangalhado, o meu cartão estava zerado, mas você crê se quiser», ouve-se por exemplo em São Gonça.

Não é que Seu Jorge seja um cantor de intervenção, mas é sem dúvida um cantor do quotidiano. E, se o mundo está virado do avesso, então ele vai falar disso. Na semana passada, ao telefone, o carioca perguntava assim: «Que sistema é esse onde aos 18 anos você é demasiado novo para trabalhar mas aos 35 já é velho? É uma loucura. O sistema deveria existir para garantir a dignidade das pessoas, mas está destruindo essa dignidade por completo.» Ele sabe bem do que fala.

Jorge Mário da Silva, é esse o seu nome verdadeiro, viveu três anos na rua, sem abrigo. Tinha crescido no Gogó da Ema, favela do Dedford Roxo, uma pequena cidade da área metropolitana do Rio de Janeiro disputada por duas quadrilhas de narcotraficantes, os Amigos dos Amigos e o Comando Vermelho. Trabalhava desde os dez anos, primeiro a fazer biscates numa loja de pneus, depois como marceneiro. À noite, era rei da festa nos bailes de funk e nas rodas de samba. Até que o irmão foi morto numa chacina e Jorge teve de fugir de casa. Encontrou abrigo debaixo de um teto de estrelas, que na verdade não é abrigo nenhum. E depois há a ironia da vida: em 2002, Seu Jorge tornou-se conhecido no mundo inteiro por fazer o papel de Mané Galinha, líder sentimental de um gangue de bandidos, no filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. E também por cantar um tema da banda sonora, Convite Para a Vida: «Sou morador da favela, também sou filho de Deus. Não sou de chorar mazelas, mas meu amor se perdeu. Sou operário da vida, da vida que Deus me deu. Mas se eu chego atrasado, o meu alguém já comeu.»

A experiência da favela, do dinheiro que não vem, do emprego que não há, estão-lhe colados à pele. «A minha luta não é contra nada, é a favor», diz-nos do outro lado do Atlântico.«Durante décadas vivemos num sistema que não permitia um modelo participativo da cidadania. Os cidadãos tinham os seus representantes, mas deixaram de ser representados. E é por isso quer as ruas estão se levantando um pouco por todo o mundo. Quando as ruas se levantam, os representantes são obrigados a ouvir. Seja no Brasil, no mundo árabe ou em Portugal. Os portugueses já fizeram uma revolução pela democracia e agora têm de fazer outra pela dignidade.»

Seu Jorge começa por dizer o que todo o artista diz, quando um jornalista de um país estrangeiro lhe faz perguntas sobre esse país estrangeiro. Afirma que Portugal é um país acolhedor, com um público caloroso, onde se come muito bem, que os concertos que aí vêm só podem ser espetaculares. Mas, quando a conversa começa a adensar-se, o homem tem uma teoria pensada, que não pode nascer de improviso. «Portugal tem uma população envelhecida, deixou que a sua máquina de produção fosse destruída e agora tem essa política austera que taxa os mais velhos, que já contribuíram com o seu esforço para o coletivo, e destrói os sonhos dos mais jovens, que estão em êxodo do país.», e ele, que passa o ano entre Los Angeles e o Rio, não pode deixar de notar a chegada dos portugueses ao Brasil. Dos novos portugueses, educados e competentes. «Os representantes não representam o povo e a internet permite a criação de novos sistemas coletivos. Veja o que aconteceu no Brasil há uns meses. No mundo árabe o povo faz uma primavera pela democracia, no mundo ocidental faz o caminho da vontade coletiva.» No futuro, assegura, os cidadãos não poderão estar afastados das decisões.

Seu Jorge esteve muito tempo na fossa, e só saiu dela porque Paulo Moura, autoridade brasileira no clarinete, descobriu-o nas ruas do Rio. Sugeriu-lhe fazer o casting para um espetáculo de teatro musical e aí sim, a sorte começou a mudar. Integrou os Farofa Carioca a meio dos anos noventa, cantava tudo o que houvesse de música negra, do rap ao funk, do samba, ao hip hop. Depois vieram os projetos a solo, o cinema, sobretudo o Cidade de Deus e, já em 2010, o Tropa de Elite 2, êxitos maiores da indústria brasileira na última década. Em 2005, foi Pelé dos Santos em Um Peixe Fora de Água, realizado por Wes Anderson. E aí conquistou definitivamente o público de outras línguas, a cantar em português alguns dos maiores êxitos de David Bowie. O camaleão britânico haveria de vir a público elogiá-lo pelo trabalho: «Se Seu Jorge não tivesse gravado minhas canções acusticamente em português, eu nunca teria ouvido esse novo grau de beleza que ele conseguiu acrescentar-lhes.»

Cantar com Bowie era um sonho, Seu Jorge admite de caras. Outro era ver Portugal e Brasil na final do Campeonato do Mundo de Futebol de 2014. Ou então o Uruguai, que ganhou a última final no Maracanã. Ou mesmo a França, que tirou o título ao Brasil em 1998. «Há muito protesto por causa do dinheiro público gasto em estádios e eu continuo a pensar que as prioridades deveriam ser outras, a saúde e a segurança, como o povo gritou na rua», diz ele. «Mas na altura em que a bola começar a rolar, vai ser uma festa. Engraçado como a música e o desporto conseguem ser duas das principais armas que a nossa sociedade tem contra o racismo.»

O racismo mudou, diz o músico, e canta-o tantas vezes. «Não é só o negro, é a mãe solteira, o pobre, o velho e o menor abandonado», afiança, «há tanto preto neste mundo que tem o cabelo loiro e olhos azuis.» A discriminação deixou de ser racial, tornou-se sobretudo económica. Mas ela há de apontar armas aos bandidos, que já não são o Mané Galinha nem o Zé Pequeno de A Cidade de Deus. Os bandidos usam gravata, avisa Seu Jorge. E é essa ideia que sobe, esta semana, a três palcos portugueses.

DISCOGRAFIA

Moro no Brasil (1998, com os Farofa Carioca)

Em estúdio a solo

Samba Esporte Fino (2001)

Cru (2004)

The Life Aquatic Studio Sessions (2005)

America Brasil (2007)

Seu Jorge e Almaz (2010)

Músicas para Churrasco, Vol. 1 (2012)

MTV Apresenta Seu Jorge (2004)

Ana & Jorge (2005)

Live at Montreux (2006)

América Brasil ao Vivo (2009)

Músicas para Churrasco ao Vivo (2012)

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt