Setúbal sonha com regresso das conservas enquanto cai mais uma chaminé
Ainda há em Setúbal quem oiça, certas madrugadas, o eco dos tamancos das conserveiras em passo acelerado para chegar às fábricas. Como se uma última vez as chamassem, fora de horas, de rua em rua, ao pregão "Há peixe! Há trabalho!". Recordações de Judite, Maria Helena, Carlos e "Zé Sopinha", gente que vive entre dois séculos. O da cidade das 400 fábricas de conservas e o da cidade que agora se reconstrói a partir dessas ruínas. Esperam ainda ver conservas produzidas em Setúbal, mas o sonho distancia-se. No bairro Salgado, as meias paredes e chaminé que restavam das centenárias Conservas António Alonso, darão lugar a uma urbanização. Da antiga fábrica, garante a Câmara de Setúbal, nada ficará.
A obra é da Romantiburgo, Lda., empresa com atividade aberta em 2018 e áreas de atuação tão diversas como a promoção imobiliária e construção de edifícios residenciais e não residenciais, ou a produção de whisky, rum, genebra e aguardente. O certo é que tem alvará para ali construir, emitido a 24 de Julho de 2020 pela Câmara de Setúbal, em despacho aprovado pela presidente Maria das Dores Meira, à época, em exercício de funções e com prazo para a conclusão das obras, em 12 meses, há muito expirado.
Quando à preservação de ícones da arquitetura industrial, reprodução de azulejo ou painéis o gabinete da vereadora do Urbanismo, Rita Carvalho, confirma que "não existem imposições relativamente à manutenção de elementos da antiga fábrica". E, embora tenha tentado manter a chaminé, "na existência de relatório técnico que indica a dificuldade técnica de recuperação, deliberou a autorização de demolição".
O destino certo da urbanização somente para habitação é que ainda não estará certo. Confirma o mesmo gabinete "a Câmara Municipal de Setúbal aprovou um pedido informação prévia, que aprova parâmetros urbanísticos, não definindo ainda os usos". Mas, do que a câmara conhece, até ao momento, "o espaço será utilizado para habitação e, eventualmente, comércio".
Quase nada resta da paisagem fabril, além de algumas chaminés que ainda se erguem acima da cidade, pouco seguras nos alicerces, e paredes mestras quebradas.
Não muito longe das obras no bairro Salgado, sobranceira ao Miradouro do São Sebastião, a antiga fábrica Perienes teve o destino enobrecido quando os seus herdeiros franceses a venderam à Câmara de Setúbal para ali se instalar o que hoje é o Museu do Trabalho Michel Giacometti.
De portas abertas desde 1995 o museu reconta a história de mulheres e homens, por gerações ligados à indústria conserveira, na exposição permanente "A Indústria Conserveira (Da lota à lata)". A pesca, salga e cozimento do peixe, a soldadura das latas, está tudo presente, à volta da chaminé erguida dentro do edifício e preservada, assim como os depósitos de água, as bancadas, redes de engrelhamento, uma mercearia ficcionada encomendada a Lisboa. Até as vozes das conserveiras se ouvem, nos testemunhos que deixaram gravados.
O historiador Albérico Afonso foi um dos jovens que em 1975 reuniram a coleção etnográfica, com supervisão de Michel Giacometti, e que mais tarde deu origem ao museu.
Está ali quase tudo do frenesim industrial que desenhou a Setúbal contemporânea e a colocou à frente do movimento operário português, falta uma coisa, "já nenhuma lata se produz", lamenta o autor de "Setúbal sob o Estado Novo".
DestaquedestaqueA indústria conserveira era o símbolo máximo de "flexibilização no mundo do trabalho". Só havia trabalho quando chegava peixe. Mulheres e homens podiam estar semanas sem ocupação e quando se apregoava trabalho pela cidade corriam para uma jornada de 12, 14 ou 16 horas.
Em passadas curtas pela exposição permanente recorda o legado da indústria que "moldou toda a história da cidade", até ao encerrar da última porta em 1993.
"Em Portugal não houve outra região com a mesma capacidade produtora de conservas" e a nível europeu Albérico Afonso desconhece, mas dúvida que tenha havido outro termo de comparação numa região com dimensão semelhante a Setúbal. "Imagine-se no início do século XX um lugar com 80% da população ligada às conservas?", era Setúbal a cidade do país com maior densidade operária.
Ali viviam os pescadores, as conserveiras, os soldadores das latas. Até diz a gente "em Setúbal quem não pesca, já pescou. E quem não solda, já soldou". Não faltavam também as fábricas do vazio que produziam as latas, as litografias que faziam os desenhos, carpintarias, vendedores.
O núcleo de trabalho alimentava-se entre si e levou a que "grande parte do movimento operário nacional tenha nascido em Setúbal. A cidade era mesmo conhecida como a "Barcelona Portuguesa" pela ligação entre a atividade operária, protesto anarquista e sindicalismo.
Movimentos operários eram constantemente necessários para "combater a precariedade num meio com demasiada mão-de-obra disponível e nenhuma regulamentação legal".
A indústria conserveira era o símbolo máximo de "flexibilização no mundo do trabalho". Só havia trabalho quando chegava peixe. Mulheres e homens podiam estar semanas sem ocupação e quando se apregoava trabalho pela cidade corriam para uma jornada de 12, 14 ou 16 horas.
"Para as mulheres, de filhos nos cestos que deixavam aos seus pés, encostados às bancadas de trabalho, a precariedade era maior". Explica Albérico Afonso que "ser conserveira tanto representava uma oportunidade no mercado de trabalho, como representava estar sujeita ao tempo dos outros", isto apesar de a maior parte do trabalho ser o delas, no engrelhamento do peixe, salga, cozedura, enchimento das latas".
Momentos que "ter-se-ão tentado fazer esquecer", começam a ser trazidos à luz após uma investigação recente. Entre 1940 e 1950 "eram comuns crises sazonais na pesca devido à falta de peixe". Nos registos do Governo Civil estão os relatos de "quando o peixe faltou e milhares de conserveiras manifestaram-se à frente do palacete do governador civil, porque ficavam sem trabalho e sustento". Com os protestos vieram atos de violência contra as mulheres e mortes.
No trabalho dos homens havia outra dignificação, tanto que, antes de surgirem as máquinas cravadeiras, "os soldadores das latas eram considerados uma aristocracia operária, qualificados e bem pagos". Mais organizados e com capacidade reivindicativa "muitos deles acabaram por se tornar empresários da indústria conserveira".
"Depois do 25 de Abril os empresários foram obrigados a cumprir algo a que não estavam habituados: direitos laborais". A precariedade alimentara o lucro bruto e "os descontos para a segurança social, as oito horas de trabalho, o direito a folgas, tudo isso deixou a indústria com despesas que não podia suportar para tanta mão-de-obra". A Revolução foi, por fim, "a machadada final", no que já estava em declínio desde o pós-II Guerra Mundial.
A partir da década de 1950 mais fábricas começaram a fechar portas do que abriam novas. Depois de 100 anos de um El Dorado onde quem tinha um pouco de dinheiro investia, chegou o declínio. Do Viso às Praias do Sado milhares de famílias ficaram sem sustento, muitas para sempre. Idosos, muitos operários não se adaptaram à nova indústria metalomecânica que cresceu nas décadas seguintes com a SETNAVE, nem à química da SOCEL.
A faina de centenas de barcos na doca dos pescadores diminuiu até quase nada. Nem por isso "Zé Sopinha", vigilante da doca, esquece "a fila de gasolinos que chegava até Albarquel, à espera para descarregarem o peixe".
O "visigodo", orgulhoso descendente do bairro do Viso, ainda tem vivas memórias de profissões que desapareceram com o fecho das fábricas e a queda das chaminés. "Vinham os batedores com uma bengala que metiam nas tulhas dos barcos, viam mais um menos até onde a bengala ia, faziam contas de cabeça e calculavam quanto peixe estava lá dentro".
Citaçãocitacao"Estavam barcos em fila à espera, mais os que já tinham entrado e a doca cheia de escadas de madeira para o descarregamento". Dos que traziam peixe para as conservas resta o Mãe de Jesus, "o último em Setúbal que ainda se dedica à pesca da sardinha"
Conserveiras, soldadores de latas, batedores não foram as únicas profissões a desaparecer de Setúbal. Com eles despediram-se os mexilhões, "homens que vinham mexer o peixe com duas latas, pagos ao fim do dia de trabalho também com uma lata de peixe". E os carregadores que recebiam o peixe dos barcos e o levavam em cestos à cabeça.
Batem as 17h00 e são horas de dar espaço às composições do rapper "Zé Sopinha", mas o lado José Mota, de 62 anos, fica presente mais uns minutos, para lembrar a doca de quando "bem miúdo, aos sete anos começou a apanhar peixe para as conservas".
"Estavam barcos em fila à espera, mais os que já tinham entrado e a doca cheia de escadas de madeira para o descarregamento". Dos que traziam peixe para as conservas resta o Mãe de Jesus, "o último em Setúbal que ainda se dedica à pesca da sardinha".
Cinco anos depois de começar na faina, aos 12 anos, o miúdo das docas já consumia drogas pesadas, "de tudo o que havia". Quando as fábricas de conservas começaram a fechar e o trabalho menos certo, "o tráfico veio tapar muitas bocas". José Mota deixou a droga aos 27, quando a trocou pela arte, "viciado em fotografia e poesia".
Entre os dois turnos que faz na doca, das 8h00 às 17h00 e das 19h00 às 22h00, nas horas vagas o rapper "Zé Sopinha" toma o lugar do vigilante para "compor de cabeça histórias sobre a malta de Setúbal". Nas letras há lugar para a "menina da praia que anda sempre de minissaia e só quer é bombar, ela é filha do presidente e é tão caliente só quer é dançar", ou para aqueles que "é tudo boa gente, é gente boa, são de Setúbal, não são gente de Lisboa". E não falta o seu próprio lugar, o do "visigodo que quer dar um concerto em Hollywood, quem não deve não teme o Zé Sopinha é o homem do leme".
No bairro do Troino, tal como na doca, não há quem não tenha memória fome ou glória da pesca ou da fábrica, de uma avó ou mãe conserveira. Atrás do balcão da centenária Mercearia Confiança, Odete Lula, de 47 anos, neta e filha de conserveiras descreve uma paisagem há muito redesenhada com novos jardins e praias recuperadas. "Desde o Troino até Albarquel toda a frente rio estava ocupada com fábricas e em dia de chegada de peixe toda a gente daqui corria pelas ruas, porque só tinham meia hora para alcançar as fábricas e os primeiros a chegar ficavam com o trabalho".
Avó e mãe contavam, porque Odete Lula já não andou nas conservas, "pelas ruas ecoava e metia respeito o barulho das socas de madeira das mulheres a bater na calçada". Falavam de um tempo em que "faltava dinheiro, mas havia camaradagem, humildade e a palavra dada era ponto de honra que ninguém desdizia". Dias com "risos de mulheres no trabalho, ou zaragatas por um lugar".
De olhos nas mãos pelas quais passaram milhares de latas de conserva, também Judite Lourenço, de 70 anos, recorda esse tempo, "quando trabalhava nos vazios, as fábricas das latas para as conservas". Começou aos 14 anos na fábrica Sol, "para os lados de Albarquel". Ficou 15 anos na passadeira, "onde um homem jogava as latas e nós depois tirávamos para as caixas".
Maria Helena Liberato, de 72 anos, também começou cedo "nos vazios". Tinha 15 anos quando foi trabalhar para a Ástoria, depois passou para a Sociedade Mecânica Setubalense. De fábrica em fábrica passaram 20 anos.
São mulheres de uma geração de conserveiras que "já apanhou contratos de trabalho", mas as suas mães passaram pelo tempo em que "andava um homem de bicicleta de madrugada pelas ruas, de uma ponta à outra da cidade, desde o bairro Afonso Costa até ao Casal de Figueiras a apregoar "chegou peixe, há trabalho!". E fosse a que horas fosse "as mulheres levantavam-se e corriam pelas ruas". As sirenes para chamar para o trabalho só vieram mais tarde, no final dos anos 70.
Maria Helena fez muitos desses caminhos com o pai "a chamar a gente para o trabalho". As memórias de criança foram tão fortes que não se apagaram, nem depois de seis décadas. "O trabalho era muito, para adultos e miúdos, e a fome também. Em bom tempo, com trabalho certo, comia-se carne uma vez por semana. Umas 250 gramas de bifinhos bem cortadinhos para os sete lá de casa. Com a fruta também era assim. Uma vez por semana", lembra.
Se deixa saudades o tempo dos pregões e das sirenes, com o peixe de Setúbal a correr o mundo? "Algumas. Miséria era miséria, mas depois o orgulho. Ainda gostava de ver umas latas por aí".
O desejo de Carlos Crispim é o mesmo. "Antes de partir ainda gostava de ver uma fábrica de conservas abrir portas em Setúbal" e, uma vez mais, latas como aquelas que nos outros séculos o "Sai Sempre" apregoava pela cidade "Cada cor seu paladar!", vindas de uma das 400 fábricas de conservas que entre 1855 e 1993 passaram por Setúbal.
Filho de operários conserveiros da Viegas & Lopes, criado a ouvir pregões e sirenes chamar os pais para o trabalho quando o peixe chegava, para ele derrubar a velha chaminé do bairro Salgado e apagar qualquer vestígio da passagem de uma fábrica por ali "é mais um passo rumo à perda de um legado, uma paisagem que, no século passado, definia Setúbal de Albarquel às Praias do Sado".
Aos 73 anos, o reformado da SECIL, já representou uma geração a "tentar fugir da precariedade das conservas". Estudou e agarrou novas oportunidades que mesmo assim não o afastaram de uma opinião firmada "deixar-se acabar a indústria conserveira em Setúbal foi um erro". E insiste, "se outros pontos do país salvaram as suas conservas e "Setúbal é terra de peixe", porque não temos as nossas conservas?".
Carlos Crispim não tem dúvidas "faltou visão ao poder local ao não apoiar o regresso das conservas a Setúbal e a pandemia já provou que é um erro apostar todas as fichas no turismo".
Seja qual for o destino das conservas em Setúbal há gerações que ainda recordam o canto das conserveiras e questionam, "porque não regressam as conservas a Setúbal?".
Enquanto o dia não chega ficam-lhe os versos de Carlos Crispim:
"Setúbal da conserveira
Refúgio da traineira
Famosa via marinha
Foste bandeira imagem
Berço de tanta coragem
Numa lata de sardinha.
Há sardinha, há sardinha
Era sol p´la manhãzinha
No moço da bicicleta.
Era mensagem solene
O apitar da sirene
na rua irrequieta.
Era música p´ra bailar
Na calçada ao passar
Tanta mulher de tamancas.
Conserveira de tamanco
Avental e lenço branco
És saudade na cidade.
Da fábrica a chaminé
É luto na baixa maré.
Gracinda Fernandes chegou à Quinta da Parvoíce há 20 anos, com sete filhos e sem condições para pagar uma casa. "Não invadimos edifícios, apartamento, nem destruímos", faz questão de esclarecer. "Quando chegámos já estava tudo no chão e entrámos no que sobrava da fábrica Vasco da Gama para morar. Pegámos nas pedras, nos ferros e construídos as nossas casas dos restos dela".
De repente estava no bairro ilegal de Setúbal, próximo à zona das Fontaínhas a começar a ser construído, "ainda só com meia dúzia de casas" agarradas paredes meias com um edifício em ruínas depois da fábrica encerrar portas em 1955.
Era tudo provisório, "até as coisas se ajeitarem". Depois o tempo passou a vida ficou mais cara, os vizinhos fizeram-se família e "os filhos imigraram, um a um, para a Irlanda, onde há trabalho". Ao fundo da rua "a pintura na parede com o nome da fábrica até se tornou uma paisagem, ou símbolo, do que é lixo para uns e sobrevivência para outros". Ao contrário de outros despojos de antigas conserveiras espalhados pela cidade, "onde a malta se reúne para consumir droga, aqui foi nascendo vida".
Com 60 anos e sozinha apesar dos 25 netos e quatro bisnetos, fora filhos, a moçambicana não tem condições para sair do bairro sozinha, sem ajuda. "A câmara e as assistentes sociais têm vindo, em Junho passado até disseram que iam começar a resolver tudo", conta.
As coisas estão a acontecer, desde que no início de 2020 o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) ameaçou demolir casas se novas construções continuassem a ser feitas encosta acima, no terreno que já é propriedade do instituto e saindo da área da antiga fábrica, sob a gestão da Câmara Municipal de Setúbal.
"Algumas famílias já foram alojadas, são as das casas que têm as janelas e as portas muradas", Gracinda e outros moradores querem a comunidade segura e assumiram a responsabilidade de "guardar o bairro, para não deixar que venham outros ocupar as casas".
No total, "vivem agora na Parvoíce cerca de 110 pessoas", diz Jorge Pimenta, porta-voz desta comunidade junto das autoridades. "A maior parte, já a ficar idosa, está na zona baixa e precisa de ajuda urgente, ainda mais com esta pandemia". Mas, depois das promessas de junho a espera continua e "mesmo quando chegar, a solução vai ser temporária". É que a Câmara de Setúbal estabeleceu um protocolo com o IHRU, que se comprometeu a comparticipar com 2 milhões e 387 mil euros rendas em casas provisórias para 73 famílias selecionadas. As casas definitivas ninguém sabe quais serão.
Séc. I a V
Setúbal e Tróia eram Caetobriga onde se produzia garum, um molho de peixe e também uma pasta, exportado para todo o Império Romano.
Séc. XV
Com o início da expansão portuguesa as conservas setubalenses voltam a correr o mundo, na alimentação dos marinheiros.
1855
Abre a primeira fábrica em Setúbal seguindo os métodos modernos de latas esterilizadas e conservas de longa duração.
1880
Empurrados pela falta de peixe nas costas da Bretanha chegam os industriais franceses. A pequena vila piscatória transforma-se num grande centro industrial.
1920
Setúbal é o maior centro industrial do país e um dos maiores da Europa na produção de conservas. Laboram 140 fábricas em simultâneo.
1940 a 1950
Milhares de conserveiras manifestam-se à frente do palacete do governador civil cada vez que falta peixe. Reivindicam trabalho digno e os confrontos resultam em várias mortes.
1993
Fecham portas as últimas unidades e fazem-se contas, ao longo de 138 anos passaram por Setúbal 400 fábricas ligadas à indústria de conservas.
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