No calendário religioso de há um par de séculos, os dias de guarda e abstinência eram mais de duzentos ao longo do ano, sempre o costume judaico-cristão de relacionar religião com alimentação se aceitou tacitamente, governando os apetites. E sempre talvez por isso mesmo se entendeu que comer peixe seria melhor caminho do que a perdição pelos caminhos da carne. Até porque, como sempre se disse, a carne - a nossa - é fraca e rendermo-nos às suas insídias era já, de certa forma, uma condenação..As influências orientais, em particular a recebida do budismo, determinam que não se pode derramar sangue inocente e como tal o consumo de carne está vedado. Em Portugal damos hoje atenção moderada e fixamo-nos nas sextas-feiras da Quaresma para as sevícias do jejum e abstinência, mas a verdade é que a prática religiosa esclarecida aponta muito mais para as refeições pobres e sem excessos desnecessários do que para a organização em clubes carne e peixe, simplesmente. E a tónica de celebração em família é que marca a mesa e o que nos dias grandes se lá põe..Além disso, curiosamente nos dias de muito calor são inúmeros os pratos fortes de carne que apetece, como que fazendo jus ao dizer popular, que o que é bom para o frio também é bom para o calor. Temos o tomate - de rama, chucha ou coração-de-boi - ao rubro, rico em água e açúcares, a cantar nas hortas do país inteiro e a clamar por companhia em saladas fresquíssimas e completas. Puxa, aliás, ao gaspacho andaluz, que bem frio é regalo insuperável. Temos as evidentes sardinhas que adoramos levar à grelha, aroma inconfundível, juntamente com pimentos e melancia. Excelentes introitos das... carnes..Pois é, desde a simples entremeada até à prosaica salsicha fresca, mesmo no gozo braseiro o calor também puxa a carne. E há pratos que não dispensamos nesta altura do ano. As muitas preparações de caça saem nesta altura para as mesas felizes, e os estufados longos iluminam a noite portuguesa. Acompanhe-nos nesta pequena digressão pelos encantos carnívoros..Sua excelência o leitão.A quem não apetece leitão bem assado à Bairrada num fim de tarde de verão, depois de uma sessão de praia? Bem cortado, como manda a regra, é delícia para toda a família. A Bairrada é a capital nacional do leitão assado e apesar das variantes na pingadeira, como era tradição na Boavista (Leiria) e nas brasas como nos Negrais (Sintra), o leitão vira petisco no verão, independentemente do modo. Faz-se dezenas de quilómetros para ir buscar o leitão que se encomendou, só pelo prazer de o partilhar em casa com os amigos e a família. O momento é de espumante geladinho, o casamento é de antologia..Ensopado de borrego.Prato indiscutível no verão alentejano e serrano, servido sobre fatias finas de pão de trigo de dois dias, constando de partes mais ou menos gordas do infante que nunca larga a mãe. A matriz culinária é a cozinha de pastor e é animada por uma menta forte - hortelã-pimenta, hortelã-da-ribeira ou poejo na cozedura lenta em pote na trempe. Faz-se um piso com alho e a erva eleita e a alquimia rústica do campo faz o resto. Deixa-se a carne em pedaços a marinar em massa de pimentão de um dia para o outro e no dia dá-se à grelha linguiça e peças diversas enquanto o ensopado apura. Muitos cortam malaguetas secas em pedacinhos que colocam no fundo dos pratos para a experiência do calor ser ainda mais plena. Nuns lugares leva batata, noutros nem pensar, num ou noutro ervilhas, mas isso de pouco importa, que nunca falte o borreguinho!.Carne de porco com amêijoas.Dos muitos pratos que já ganharam asas e voaram para fora das regiões de origem, este é talvez o mais frequente. Deixou o barrocal algarvio há muito tempo, esse espaço sagrado onde mar e terra aprenderam a conviver à mesa das aldeias da serrania de Monchique. Tanto descia a carne até junto do mar como subiam os bivalves à serra para completar a fusão, importante era afastar a fome e a ruína, a que historicamente pouca atenção se dá sempre que se fala do Algarve e suas raízes culinárias. Vence de qualquer forma o sabor e é fabuloso. Não há esplanada de cidade que não ofereça carne de porco "à alentejana" - por ser do sul - entre os seus pratos de verão. Sabe bem com cerveja ou vinho branco, e o tinto não é de enjeitar..Galinha com conquilhas.Este é um prato de carne que ainda não saiu do barrocal e que tal como todos os que têm conquilhas na base é de baixo custo e incrivelmente saboroso. Estufa-se bem a galinha com todos os temperos, ao longo do tempo necessário para a carne amaciar e cozer. Depois leva-se carne e caldo com as conquilhas à cataplana para fundir os sabores e como num passe de mágica, acontece. Os lares do barrocal guardam mil receitas que vale a pena visitar, algumas são de javali, espécie hiperabundante da serra de Monchique, e harmonizam muito bem com camarão e batata-doce, por exemplo. Comida de mantença que ninguém dispensa mesmo no pino do verão..Cabrito estonado.Estonar batatas é no norte sinónimo de descascar e no caso da preparação especialíssima de Oleiros e do norte alentejano significa pelar; retirar os pelos; barbear. No fundo, é a mesma preparação que se faz para assar o leitão à moda da Bairrada. O cabrito, tendo menos gordura e mais fibras, exige cuidados redobrados na assadura, de resto os procedimentos são próximos. Uma pasta de alho e pimenta preta, mariná-lo de véspera e passar vinho azedo antes de o entregar ao forno quente. Não há verão sem cabrito estonado e só não fica viciado nele quem nunca o provou..Sopa seca.Trata-se de um aproveitamento do cozido que se pratica muito em Trás-os-Montes, onde mesmo o mais elementar enchido tem estatuto de nobreza. Aproveita-se tudo, escorre-se e leva-se em travessa funda ao forno, com pão por cima. Podemos estar a morrer de calor -- morre-se de calor no verão em Mirandela, mas a reação provocada por este maravilhoso cozido seco, ou sopa seca, é refrescante. É indispensável subir ao Romeu e prová-lo no Maria Rita. Mas faz-se por toda a parte, e as crianças adoram..Alcatra à açoriana.Faz falta o vinho de cheiro para chegar à receita de sempre, assim como a banha de porco fresca para untar as caçoilas que se leva com os pedaços de carne ao forno, e o toucinho alto. Alho e cebola para dar sabor, e muitos anos de experiência para afinar o gostinho final, o prato bem podia estar na bandeira açoriana, ao lado do açor que a ornamenta. Não há frio nem calor, e a peça que se corta em pedaços nem tem de ser da alcatra. Na Terceira é onde tem a declinação mais importante, mas come-se por todo o arquipélago. O verão puxa frescura, mas não é a carne por ser carne que a vai perturbar. Importante é ir passando pelos lugares do nosso Portugal e aplicando a regra de sempre em festa, irmo-nos sentado à mesa e provando as preciosidades que saem da cozinha. Vai ver que a carne é forte..Fernando Melo é crítico de vinhos e comida na revista Evasões. Engenheiro físico pelo IST, dedica-se há 30 anos ao estudo das raízes e dos patrimónios gastronómicos do país, percorrendo ao pormenor o território, nas suas mesas, vinhas e adegas. Dá formação em Enogastronomia nas escolas de hotelaria nacionais.