Sete mil milhões de outro como nós

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Há anos atrás um fotógrafo francês chamado Yann Arthus-Bertrand ficou retido numa aldeia no Mali enquanto um mecânico tentava arranjar o helicóptero que o transportaria. Aproveitando o tempo, Arthus-Bertrand conversou longamente com um habitante da aldeia sobre a sua vida, os seus sonhos, as suas expectativas, os seus medos e as suas ambições. Dessa conversa nasceu um projeto transformado em exposição itinerante chamada "7 mil milhões de outros", que envolveu mais de 5 mil horas filmadas com 8 mil pessoas em 84 países diferentes, a responderem às mesmas 45 perguntas sobre a família, o amor, a morte, o perdão, a natureza, o sentido da vida, os desafios e os sonhos de criança de cada um.

O que nos dizem um taxista português, uma pescadora brasileira, um sapateiro chinês, uma artista alemã, um empresário afegão ou uma reformada norte-americana? O que nos dizem 8 mil pessoas de todas as partidas do mundo, com vidas diferentes, com experiências diferentes e com possibilidades diferentes?

As entrevistas de Yann Arthus-Betrand mostram que há um conjunto de preocupações que parecem ser comuns a todos, como a esperança num futuro melhor para filhos - mas algumas vezes nem tanto para as filhas -, o medo (ou pelo menos a preocupação) com a morte e, muito mais no caso dos rapazes do que das raparigas de todo o planeta e de todas as condições sociais, o sonho de serem pilotos de avião...

No entanto, e como disse José Ortega Y Gasset, cada um de nós é o que é e também a soma das respectivas circunstâncias de vida. Ou seja, mesmo partilhando algumas das principais angústias e sonhos, as pessoas não são todas iguais e muitas vezes têm objectivos diferentes e até opostos. Estamos, portanto, condenados a não nos entendermos?

No ano anterior à morte de Nelson Mandela visitei Robben Island, a prisão onde Madiba - o Preso 46664 - passava os fins‐de‐semana fechado numa cela de 2,5 x 2,1 metros, sem cama e sem casa de banho e trabalhava de segunda a sexta-feira numa pedreira. Guiado por um ex-preso político, ouvi contar na primeira pessoa os sonhos e as circunstâncias de quem foi preso aos 22 anos e o ódio que nasceu dentro das celas, dos pátios e dos corredores de uma ilha à vista da Cidade do Cabo, uma das cidades mais bonitas do mundo. Nessa visita estive no último lugar onde esperaria ver nascer a compreensão, o perdão, a paz e a esperança para milhões de sul africanos e para todas as pessoas de boa vontade nas sete partidas do planeta, que Mandela ainda representa.

O que faz com que uma pessoa que passou por tanto e a quem tanto foi tirado abrace os seus captores? E tenha impedido, pela palavra e pelo exemplo, que anos de apartheid fossem substituídos por anos de vingança e, quem sabe, por um banho de sangue? Mandela era tão diferente de nós, vulgares seres humanos para quem um olho paga-se com outro olho, que temos a mesma dificuldade em percebê-lo como nos é fácil admirá-lo.

Numa época em que poucos - para não dizer nenhuns - são exemplos em que nos podemos inspirar, onde a compaixão é considerada fraqueza, onde o egoísmo é a norma, onde a pequena esperteza saloia é mais importante que o trabalho e o esforço, Mandela desafia-nos a sermos melhores, maiores, mais humanos.

Mas não é só na nossa esfera privada que Mandela nos mostra um caminho diferente. Numa época onde os que se dedicam ao serviço do seu próximo são olhados com desconfiança e com desprezo, Mandela chama-nos a olhar para a nobreza da atividade política. Do trabalho para melhorar a vida dos nossos concidadãos, do esforço para promover a qualidade das nossas instituições democráticas, da vontade honesta em colaborar com aqueles com quem não concordamos.

Na semana em que o mundo comemora o Dia Internacional de Nelson Mandela, talvez devêssemos ser 7 mil milhões de nós e não 7 mil milhões de outros.

PS. Por razões profissionais, chega hoje ao fim a minha colaboração com o DN. Agradeço ao Leonídio Paulo Ferreira o convite para opinar sobre os temas que a cada semana me pareceram interessantes e ao meu leitor (se for só um) ou leitores (se forem dois) a paciência de dedicarem uns minutos às coisas que tive para contar.

Investigador Associado do CIEP / Universidade Católica Portuguesa (As opiniões expressas neste texto vinculam exclusivamente o seu autor)

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