Séries e cérebro humano. Uma relação sem fim à vista

É normal um espectador acompanhar mais do que uma história de ficção. Mas quantas personagens e enredos consegue o cérebro processar? A resposta é surpreendente
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Basta uma história absorvente com personagens apaixonantes. Um episódio aqui, uma temporada ali e, de repente, já nada nos tira da frente do ecrã. Atualmente, raro é o espectador que se restringe a um só enredo. O grande desafio é: quantas séries conseguimos encaixar na nossa memória? Com centenas e centenas de personagens, cada uma com os seus segredos e carga psicológica, haverá algum limite no número de tramas que conseguimos acompanhar?

A resposta é não, segundo um grupo de especialistas norte-americanos ouvidos pelo The Wall Street Journal. O cérebro humano consegue manter-se a par de qualquer narrativa, fictícia ou não. Uma capacidade que se terá desenvolvido como forma de nos adaptarmos a situações da vida real. "Sermos capazes de acompanhar os enredos e as personagens é a mesma coisa que acompanhar as vidas dos nossos amigos", explica Richard Gerrig, professor de ciência cognitiva na Universidade de Stony Brook, em Long Island, Nova Iorque. "Quando temos de nos adaptar a uma personagem, é o mesmo que nos encontrarmos com um colega ou um primo que não vemos frequentemente. Às vezes existem momentos embaraçosos até encontrarmos o lugar ideal na nossa memória", acrescenta.

No ano passado, de acordo com um estudo do canal FX, registaram--se 371 séries originais transmitidas em televisão e em serviços de streaming, como a Netflix ou o Hulu. Entre elas, o jornal norte-americano realça o impacto de Guerra dos Tronos, uma das mais populosas e complexas histórias produzidas recentemente, e cujo último episódio da 5.ª temporada, transmitido a 14 de junho, vai deixar milhões de fãs em suspenso até ao próximo ano. Destaque ainda para Orange is the New Black, que explora as complicadas histórias de vida de um grupo de prisioneiras, e que em junho regressou para uma terceira temporada na Netflix, ou ainda para Orphan Black, história de ficção científica da BBC America, cuja atriz principal desempenha seis personagens. "É como se estivéssemos completamente alcoolizados e pedíssemos mais uma bebida", atira Greg Dillon, professor de psiquiatria e saúde pública no Weill Cornell Medical College, em Nova Iorque, ao site Techradar. "Um simples episódio tem tantos altos e baixos que, no fim, estamos tão exaustos e menos receptivos às ideias emocionais e intelectuais apresentadas. No entanto, não hesitamos em clicar para ver o capítulo seguinte", acrescenta.

Em conversa com o DN, Edward Braman, professor de estudos televisivos na Universidade de York, Inglaterra, e produtor do Channel 4, reconheceu que "a forma como consumimos histórias no ecrã mudou", assim como também mudou a própria natureza dos espectadores. "Ao contrário do que acontecia há vinte anos, a televisão já não está limitada a uma caixa no canto da sala nem a horários rigorosos. Já não são os executivos da televisão que decidem quando vamos ver um programa. Agora, as pessoas têm acesso a séries completas de uma só vez, como o caso de House of Cards ou outras séries da Netflix, e podem vê-las de trás para frente e ainda discuti-las nas redes sociais." "Por outro lado", continua, "temos espectadores muito mais jovens e exigentes. Por isso, os canais de televisão têm cada vez mais um impulso comercial, uma necessidade de investir em histórias extremamente complexas para conquistar a lealdade da audiência".

O alucinante ritmo televisivo faz também parte da vida de Mark Johnson, produtor de sucessos como Breaking Bad, Better Caul Saul ou Halt and Catch Fire: "Os dias de nos esquivarmos até à cozinha para fazer uma sanduíche mista, voltarmos e ainda estarmos a par [do que acontece na série] já lá vão."

É por isso, aliás, que em cada novo episódio de qualquer trama, os espectadores podem contar com uma recapitulação dos momentos-chave anteriores. Para poderem processar melhor os desenvolvimentos das séries preferidas, aponta ainda o The Wall Street Journal, são também cada vez mais as pessoas que recorrem a aplicações com resumos das histórias e a comentários dos atores e equipa técnica nas redes sociais.

Nos Estados Unidos, um adulto gasta, em média, 39 horas por semana a assistir a séries através da televisão, DVD ou streaming, segundo a empresa de estudos de mercado Nielsen. Sabe-se ainda, de acordo com a famosa aplicação Trakt.tv, que monitoriza os hábitos de consumo de cerca de um milhão de espectadores, que, em média, estes veem cinco séries simultânea e regularmente. Alguns dos seus mais ativos membros chegam mesmo a acompanhar 18 histórias ao mesmo tempo, cerca de 92 episódios por mês.

Já quanto ao futuro, em conversa com o DN, Edward Braman prevê um "ritmo ainda mais alucinante". "As redes sociais e o chamado second screening já fazem parte da vida dos espectadores. Vários académicos e diretores de canais de televisão têm vindo a reconhecer uma nova tendência, chamada transmedia, e que significa que cada vez mais o público quer ver as suas histórias de eleição desenvolvidas em diferentes plataformas, mantendo as personagens vivas. É o caso, por exemplo, da saga Star Trek, que já resultou em séries, desenhos animados, videojogos... É este apetite pela continuidade que vai predominar."

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