Sérgio Tréfaut: "Não gosto que as pessoas saiam do filme com a ideia de que entenderam tudo"

Os olhos azuis que contrastam com o negro do nicabe são de Joana Bernardo, atriz. Mas durante alguns segundos ela desaparece completamente na identidade de Bárbara, 20 anos, que aguarda, como outras mulheres, a execução do marido guerrilheiro do Daesh. Há outros momentos assim em A Noiva, momentos de uma certa suspensão a envolver as imagens, mas essa cena em particular, em que tudo passa pelos olhos azuis de Bárbara - sem que esse "tudo" seja propriamente discernível -, produz um arrepio no espetador. Naqueles olhos sem aparente emoção cabem todas as emoções e perguntas, às quais Sérgio Tréfaut se recusa oferecer respostas, ainda que seja de um grande ponto de interrogação que parte este seu filme..Não se trata de um projeto de agora: "Estive no Iraque pela primeira vez em 2012 e, nessa altura, quis fazer um documentário sobre a maneira como os americanos tinham deixado o país quando se foram embora - supostamente traziam a democracia e a paz, mas o que ficou foi caos e guerra civil. Então fiz muita pesquisa, entrevistei muita gente, filmei essas entrevistas em Bagdad e Mossul, mas o documentário deixou de fazer sentido no momento em que Mossul passou a ser a capital do Estado Islâmico. Foi aí que comecei a interessar-me pelas histórias dos jovens europeus que iam para lá alistar-se num universo de assassinato em massa... Aliás, há ainda outra relação a fazer: em 2015 eu estava a montar o Treblinka, portanto, estava a trabalhar sobre o horror do extermínio, e esta realidade tocou-me muito, doeu-me na barriga." Palavras de alguém que guarda na expressão o entusiasmo e desassossego dos seus projetos e vivências cruzadas..Nascido no Brasil, Tréfaut tem construído uma obra assente na diversidade geográfica, desde o Cairo (A Cidade dos Mortos) ao Rio de Janeiro (Paraíso), passando pelos lugares do Holocausto, percorridos num comboio transiberiano (Treblinka, precisamente), sem esquecer os filmes rodados no Alentejo e em Lisboa..Diz-nos que a experiência do Cairo, onde aprendeu a falar árabe, terá sido a verdadeira origem do desejo de ir ao Iraque. Uma vez aí, ficou em contacto com os poucos jornalistas portugueses dedicados ao assunto, leu entrevistas dos rapazes que se alistavam no Daesh, inteirou-se sobre essa realidade durante dois anos, e acabou mesmo por escrever um guião. Porém, não gostou do que tinha em mãos.."Não queria fazer um filme de aventuras, não é isso que me interessa no cinema. Há toda aquela escola dos que cresceram com o western e John Ford; eu estou-me a cagar para John Ford, tirando um ou outro filme. Tenho muito mais paixão por Buñuel, Pasolini, pelos realizadores que fizeram um cinema de espanto e curiosidade pelo desconhecido, qualquer que seja, como o místico em Dreyer", sublinha..É por essa vontade mais acentuada de mistério que se justifica o ângulo de A Noiva, filme sobre uma viúva da Jihad que nos atira para um cenário incómodo, onde a dúvida empalidece perante o estudo silencioso da personagem, enquanto adolescente presa entre aquilo que foi e aquilo que se tornou. Uma jovem com cara de menina, dois filhos para cuidar e um terceiro no ventre, à espera de ser julgada pelos tribunais iraquianos..Tréfaut pergunta: "O que é que elas esperam da vida? Foi isso que me levou a fazer este filme, no contraponto das reportagens e notícias. Ou seja, sem uma tentativa de explicar ou criar um julgamento. Sempre achei uma simplificação idiota aqueles argumentos do género "são de famílias pobres da imigração...". O raio que os parta é que são! O Jihadi John era de uma família endinheirada, o Eichmann não era um atrasado mental - as pessoas não são burras, nem pobres, são uma mistura de muita coisa. Os bolsonaristas, que eu odeio, não são pobres ou ricos, não são todos fanáticos religiosos, há de tudo... Há um mistério que envolve certas escolhas, que não são as nossas, mas é preciso admitir que essas pessoas existem e contêm a dualidade do universo de onde vêm e aquele onde foram parar.".Esta dualidade leva-nos a uma música de Amy Winehouse, Back to Black, usada na banda sonora como meio de afirmação de um tempo que ficou lá atrás. Uma sonoridade que ainda mexe com Bárbara e fá-la "pecar" em nome da memória do corpo rebelde que parecia ter abandonado. "A Amy Winehouse funciona aqui como um universo diametralmente oposto, que ainda está dentro desta adolescente. Há um saudosismo, por exemplo, quando olha para uns jeans ou quando se encanta com a maquilhagem, porque é algo que ainda está com ela. Isso já me impressionava no Cairo, há vários anos, e hoje muito mais: aquelas raparigas que usam o nicabe, mas que estão maquilhadíssimas! E olham para você com um ar super-sedutor... Ou seja, há essa dualidade, esses mundos que convivem", recorda o realizador..A Noiva está sempre numa fronteira. Seja entre o passado, o presente e o futuro, seja entre a ficção e o cunho documental. Se a referida cena da execução escapa ao traço realista ("são bastante mais sumárias", diz Tréfaut), "o diálogo que ela tem com o general e o coronel é uma transcrição ipsis verbis da captura da primeira francesa de origem magrebina na queda de Mossul. De resto, o campo é totalmente realista, embora seja um campo de refugiados e não de prisioneiros, a paisagem é realista, os camiões são exatamente assim, e as mulheres que aparecem, não sendo prisioneiras do ISIS, como é óbvio, são refugiadas sírias para quem é natural estar sentada daquela maneira, viver em tendas, comer daquela forma e viver numa espécie de matriarcado em que as crianças são de toda a gente. Isso nem eu poderia escrever.".Apesar de se ter inspirado, a princípio, no caso da jihadista luso-holandesa Ângela Barreto, Sérgio Tréfaut criou uma personagem a partir de histórias diferentes, fazendo de Bárbara um rosto universal e ao mesmo tempo um enigma insolúvel. Ao tentar responder às suas próprias perguntas, fora do âmbito narrativo do filme, o realizador diz ter encontrado apenas como denominador comum a questão do idealismo: "São pessoas que estão à procura de um absoluto. Os rapazes que combateram, sonhavam. Havia um sonho qualquer de Justiça. Os evangélicos no Brasil sonham - o contrário daquilo que eu penso, mas sonham. E se não os compreendermos como tal, é muito difícil levá-los a sério enquanto opositores contra os quais queremos lutar.".Quanto à ausência de explicações para aquilo que se vê no grande ecrã, Tréfaut vai ainda mais fundo na assertividade: "Não gosto de psicologismos fáceis. Temos aquele grande exemplo, na história do cinema, do Belle de Jour: nunca há uma explicação para o facto de a Catherine Deneuve ir passar as tardes naquela casa [um prostíbulo]. Não é porque o pai bateu na mãe - não há uma explicação que dê conforto. Da minha parte, não gosto que as pessoas saiam do filme com a ideia de que entenderam tudo. Eu próprio, que fiz o filme durante quatro anos, não entendi!".O que definitivamente se entende é que Joana Bernardo, com uma interpretação minimalista, é uma escolha admirável: "Procurei uma atriz que provocasse no espetador uma certa aflição por parecer uma criança, e ela parece que tem 14 anos, mesmo que tenha 20.".Quando perguntamos se houve dificuldades em filmar no Curdistão iraquiano, o realizador volta a fazer uma comparação com o Brasil: "O Curdistão é uma zona mais tranquila de se viver do que o Rio de Janeiro. Podemos andar na rua, em Erbil ou noutras cidades, a qualquer hora da noite sem problema. Agora, os 10% do filme que fomos rodar a Mossul é outra história. Há vários checkpoints para não se sair do Curdistão iraquiano para o resto do Iraque. Aí perdíamos meia hora/uma hora com o controlo do equipamento de filmagem. E a partir dessa fronteira éramos escoltados por dois a três carros de combate e não sei quantas Kalashnikovs..."..Isto no meio de uma rodagem complexa em termos de língua, já que no território do Curdistão iraquiano as pessoas recusam-se a falar árabe ("é considerada a língua do inimigo"). A equipa dividia-se entre curdos-iranianos, curdos-iraquianos, curdos-sírios, e até havia um produtor curdo-turco..Enfim, uma aventura. Garantidamente anti-fordiana, introspetiva e sensorial..A Noiva chega às salas num momento em que o seu realizador, imparável, já matura os próximos projetos: um documentário sobre "como o Brasil destrói a sua História a partir de um mito de identidade que vem do futuro", e um filme-ensaio sobre "a maneira como em política rescreve a História em proveito próprio". Este último começa com Bolívar e acaba com Putin, que "aldrabou a História da Rússia para justificar a sua guerra e manipular a opinião pública nos últimos 20 anos"..dnot@dn.pt

Sérgio Tréfaut: "Não gosto que as pessoas saiam do filme com a ideia de que entenderam tudo"

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