Sergei Loznitsa filma o pesadelo ucraniano
De que falamos quando falamos da Ucrânia? O cineasta ucraniano Sergei Loznitsa (nascido na URSS, em 1964) não tem ilusões. E define assim o seu trabalho: "Em primeiro lugar, o que me interessa, e aquilo que me diz respeito, é o tipo de seres humanos gerados por uma sociedade comandada pela agressividade, a decadência e a desagregação". E com as mais céticas perspetivas de futuro: "São as pessoas, a sua mentalidade e as relações que estabelecem que preparam o terreno das catástrofes históricas". Tudo isso está no seu novo filme, o brilhante e perturbante Donbass, escolhido para a abertura oficial da secção "Un Certain Regard", em Cannes.
Tendo em conta a atualidade temática do filme de Loznitsa, talvez se justificasse tê-lo incluído no lote de obras que concorrem para a Palma de Ouro. Seja como for, o modo como foi programado não envolve qualquer secundarização - convém lembrar que "Un Certain Regard" é um espaço que integra também a seleção oficial, embora com um palmarés autónomo (este ano, o respetivo júri é presidido pelo ator Benicio del Toro).
Como o próprio Loznitsa escreve na nota de intenções, tratava-se de fazer o retrato de uma guerra interminável travada "entre o exército ucraniano, apoiado por voluntários, e gangs separatistas, apoiados pelas tropas russas". Não é um dossier político sobre a situação, mas sim uma visão atual das cidades e campos da Ucrânia, tendo como ponto de partida acontecimentos verídicos que o cineasta investigou, reconhecendo que, no seu misto de violência e absurdo, podem parecer inverosímeis.
Através de várias histórias situadas na região identificada no título, Donbass possui a dimensão de um pesadelo coletivo, refletido na vulnerabilidade dos destinos individuais. Os treze episódios do filme (ligados por algumas personagens que vão reaparecendo) vão desde a saga de um homem que tenta recuperar o seu veículo junto de uma burocracia letal, até essa sequência incrível em que um prisioneiro dos separatistas é atado a um poste, de modo a suscitar as reações cada vez mais agressivas de peões anónimos.
Amor e verdade
Retomando algumas linhas de força do seu trabalho (lembremos No Nevoeiro, produção de 2012 sobre uma região da Rússia ocupada pelas tropas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial), Loznitsa filma essa dificuldade muito humana de lidar com o real à nossa volta. Em boa verdade, a pergunta é: de que falamos quando falamos do real?
Digamos que a mesma pergunta, quando formulada em linguagem melodramática, pode gerar um filme como Todos lo Saben, de Asghar Farhadi, escolhido para a abertura oficial do festival e integrando também a secção competitiva (opção algo surpreendente, já que o primeiro filme é quase sempre uma obra extra-concurso).
Farhadi estreia-se em língua espanhola com uma história de crescente inquietação, dirigindo um par com apelo internacional: Penélope Cruz e Javier Bardem. Este é, de facto, o retrato de uma família abalada pelo rapto de uma filha adolescente e, mais do que isso, assombrada por um segredo que, num certo sentido, como diz o título, "todos sabem". Resta saber como viver esse segredo e, mais do que isso, como dizê-lo. Relançando, assim, alguns dos seus temas obsessivos (lembremos o notável O Vendedor, de 2016), Farhadi pergunta como enfrentar o equilíbrio instável entre amor e verdade - à sua maneira, é também uma arte de fazer política.