Será um erro deitar sal de novo sobre Cartago
Ben Ali talvez não volte a ver Cartago, depois de ter fugido do palácio presidencial onde vivia há 24 anos. Mas os dez milhões de tunisinos, que aplaudiram o seu exílio, deverão agora olhar para os vestígios da cidade que há 2200 anos rivalizava com Roma e aprender com a história. Sobretudo, não acreditar na política de terra queimada, que nem os romanos aplicaram com coerência. Afinal, um século após ter arrasado Cartago e espalhado sal no chão para que lá nada voltasse a crescer, o império sentiu necessidade de construir uma nova cidade, tão excelente era a localização junto ao mar. São as ruínas dessa Cartago romana, e não da fundada pelos fenícios, que os turistas visitam e que podem ser observadas com especial graça das varandas do palácio.
Tinha certa razão Ben Ali, um general promovido a político, quando em 1987 afastou Habib Burguiba. Já octogenário, o herói da independência vivia períodos de demência e era incapaz de governar o mais liberal dos países do Magrebe. Assumindo-se como herdeiro, Ben Ali permitiu que o ex- -presidente vitalício morresse em paz na sua Monastir natal e não deu qualquer passo para rebaptizar a principal avenida de Tunes. Aliás, aproveitou as estruturas do Partido Neo-Destur, que chegou a ser socialista, e transformou-as em Reunião Constitucional Democrática, força aberta à entrada dos capitais estrangeiros. Fiel à tradição modernista que Burguiba soubera construir com a legalização do divórcio, Ben Ali fez-se também campeão da causa da mulher árabe, nomeando ministras e embaixadoras, entregando até parte do poder à segunda esposa, Leila, que encarnaria os podres do regime e acabaria apelidada de 'Regente de Cartago'.
Nunca se proclamando vitalício, Ben Ali mexeu na Constituição para se perpetuar. E apreciava plebiscitos. Uma população educada tolerava o seu despotismo por receio de represálias, mas também porque a economia florescia. E a Europa aplaudia interesseira um país que parecia melhor que o resto da região: uma Líbia chefiada por um Kadhafi imprevisível, um Marrocos cujos anos de chumbo no reinado de Hassan II assustavam, mas sobretudo uma Argélia que durante uma década tremeu perante o terror islamita.
Com um fiel de Ben Ali à frente do país, o exército a tentar ser neutral, o RCD ainda poderoso e o líder islamita a regressar do exílio, o futuro da Tunísia é uma incógnita. Mas os protestos nas ruas mostraram um povo instruído, cosmopolita, sedento de democracia. Para lá chegar não existe uma fórmula, embora se possa admitir existir uma via tunisina. Que começou com Burguiba, que quis o povo educado, e prosseguiu com Ben Ali, que sonhou poder controlar os cafés--internet. Essa via terá agora que encontrar outro líder. De preferência menos apegado ao palácio de Cartago. Mas que não se lembre de deitar sal sobre o passado.