Ser uma mãe SOS é tomar conta de dez filhos e ver isso como missão

A aldeia SOS mais antiga do país já viu crescer 500 crianças enviadas pelos tribunais em quase meio século. Anabela Carreira, 55 anos, é uma das mães de serviço. Entrou ali com 49 anos, depois de ter criado o seu próprio filho
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"Nenhuma criança deve crescer sozinha". E por isso há quem abdique de uma vida familiar convencional para se dedicar a criar jovens que foram retirados aos pais. São as mães SOS que vivem com os "filhos" nas aldeias de crianças SOS, como a de Bicesse (Estoril). Esta tem dez casas onde estão crianças que enviadas para ali pelos tribunais, por serem vítimas de negligência, maus tratos ou abusos. Em quase 50 anos, a aldeia já recebeu mais de 500 crianças.

É por isso que está a ser divulgada pela rede de Aldeias de Crianças SOS, em mais de 60 países, a campanha de solidariedade "Nenhuma criança deve crescer sozinha".

As mulheres que entram para as aldeias como mães sabem que não vão para uma profissão normal, apesar de serem remuneradas. Em Bicesse são nove com esta função. A mais velha tem 63 anos e entrou ali com 27. Nunca teve filhos mas cuidou de três ou quatro gerações. Hoje já tem filhos com 50 anos, da mesma idade da aldeia de Bicesse (completa meio século para o ano). "Isto é uma missão", conta uma das mães de serviço, Anabela Carreira, de 55 anos, que ali se encontra há seis a criar a sua outra família. Uma missão que é incompatível com estar casada, por exemplo. "Não dá. Os maridos não podem viver na aldeia e nós só temos uma folga por semana". Na aldeia existem dez casas a funcionar. Anabela está na maior, uma residência ampla com seis quartos, suficientes para os seus dez filhos sociais. É, neste momento, a mãe com mais filhos a cargo. O normal é terem sete, no máximo. A casa tem ainda cinco casas de banho, uma sala de jogos, cozinha e uma sala de jantar.

Quando o DN entrou na moradia, pelas 17.00 de um dia de semana, Anabela andava numa lufa lufa porque alguns dos seus dez filhos "sociais" estavam a chegar da escola. "As idades das minhas crianças são: 7, 12, 12, 13, 15, 17, 18 e 19 anos. Comigo estão três irmãos biológicos; outro casal de irmãos; outros dois e uma rapariga de 19 anos que veio para a aldeia com o irmão mas este já se encontra em autonomia, num apartamento aqui". Um dos miúdos anda de cadeira de rodas e tem ataques de epilepsia mas os outros filhos ajudam a mãe a cuidar dele.

Existem três aldeias SOS no país: a de Bicesse (há 49 anos), Gulpilhares, em Gaia (36 anos) e a da Guarda (30 anos). Os miúdos chegam à comunidade e ganham uma nova família até serem adultos autónomos. Têm uma mãe SOS para cuidar deles a tempo inteiro e lhes enxugar as lágrimas do passado. Ganham também outros irmãos além dos biológicos. E não vão para adoção, ficam ali a construir alicerces. É uma alternativa para grupos de três, quatro ou cinco irmãos, de famílias desestruturadas da Grande Lisboa, que corriam o risco de ser separados se fossem adotados.

Criou o seu filho e rumou à aldeia

Anabela Carreira já teve outra vida, na Nazaré. Foi casada, criou um filho, hoje com 35 anos, divorciou-se. E aos 49 anos fechou o estabelecimento comercial que tinha e rumou a Bicesse para cumprir um sonho. "Vi uma reportagem há vinte anos sobre as aldeias SOS e fiquei fascinada. Mas na altura o meu filho tinha apenas 15 anos, não o podia deixar". Depois do filho se formar e casar, Anabela não esperou mais. "As mães SOS tinham de ter dos 27 aos 45 anos. Eu já tinha 49. Telefonei então, perguntei se ainda podia e escrevi a dizer que gostava de vir. Vim a uma entrevista e fiquei um fim de semana com as crianças, que é o teste para todas as candidata, para ver se aguentam esta realidade. Há pessoas que vêm e desistem". Não foi o caso dela, que faz isto por vocação. "Lembro-me quando era pequena e perguntavam: "O que queres ser quando fores grande? E eu respondia: mãe"."

Anabela está com os mesmos meninos que tinha, quando entrou. A ideia é sempre completar um ciclo de criação, como numa família normal, até à autonomia dos jovens. A comunidade aldeia SOS tem apartamentos para viverem autónomos a partir dos 18 anos e completarem a sua educação ou iniciarem uma profissão. Alguns ficam até aos 23 anos.

Anabela já tem dois em idade autónoma, um de 18 e uma de 19. "Ainda não quiseram sair. A rapariga está a tirar o curso de Estética numa escola profissional, com equivalência ao 12.º ano". O rapaz de 18 anos está no curso profissional de restauração. Um com 17 está a tirar auxiliar de saúde e outro com 15 encontra-se na Escola Náutica a estudar para serralheiro mecânico. "Mas também podem ir para a faculdade, se quiserem. A Segurança Social dá-lhes um apoio para esse efeito até aos 18 anos, que pode ser prolongado até aos 21. E as universidades facultam uma bolsa de estudo a um ou outro aluno", adianta Manuel Matias, do departamento de comunicação e angariação de fundos da organização Aldeias SOS,

Das 5.00 às 23.00 ...non stop

A descrição do dia-a-dia de Anabela Carreira é de deixar qualquer ouvinte extenuado. "Levanto-me às 5.00 da manhã, ponho a mesa do pequeno-almoço, arranjo os lanches para a escola, entre 18 a 20 sandes (alguns miúdos levam duas ou três). As crianças estão um dia inteiro fora de casa, algumas estudam em Lisboa e apanham transportes para lá. Há uns que só chegam às 19.00 ou até depois. Faço oito máquinas de lavar roupa por dia. Dou almoço a dois ou três deles que estudam aqui mais perto. Todos os dias passo a ferro. Chego a lavar onze lençóis por dia".

As crianças começam a chegar a casa pelas 19.00 que é "quando começam os banhos". Mudam de roupa todos os dias e "nenhum vai para a mesa sem tomar banho".

À noite "ponho logo a roupa em cima da cama dos mais novos. De manhã, faço as camas com os mais pequenos porque os mais velhos já fazem esta tarefa".

É também a mãe que vai às consultas com os miúdos e que faz as compras para a casa. Também tem de ser um pouco psicóloga. "Muitos destes miúdos vêm marcados e alguns vieram de outras instituições. Não gostam de falar do passado. Só depois de sentirem confiança é que se abrem", conta.

Manuel Matias adianta que estas comunidades têm sempre um diretor a apoiar uma equipa técnica composta de duas assistentes sociais, uma psicóloga e quatro educadores. "Há ainda os tios ou tias que substituem as mães nas folgas. Em Bicesse temos quatro tios. É também uma função remunerada. Têm de procurar orientar as coisas como as mães fazem em cada casa".

Manuel Matias tem orgulho no trabalho das aldeias SOS. "Temos mães com 30 anos de casa, aqui em Bicesse. Já educaram três ou quatro gerações de jovens. No Natal podem ter uma mesa com 40 pessoas à vontade". Já viram os filhos da aldeia a terem filhos, já são avós. "Os filhos, já depois de terem as suas vidas, vêm passar com elas o Dia da Mãe, o Natal e outras festividades".

O modelo tradicional das aldeias SOS, pela Europa, é este. Mas já começam a surgir alternativas que permitem casais a viverem nestas comunidades. "Visitei uma aldeia SOS na Áustria, que acolheu crianças refugiadas sírias e tem um casal sírio a tomar conta delas, por exemplo", conta Manuel Matias.

Anabela Carreira é que já não se imagina com menos de dez filhos. "Vai ser difícil ficar com menos. Tenho sempre uma mesa de Natal cheia. E no Dia de Natal vem a minha família biológica, o filho, a nora". Nunca tira a folga semanal. Prefere tirar ao final do mês cinco ou sete dias. "E o meu filho vem cá muitas vezes. A nossa família pode fazer parte da vida destas crianças e isso é muito bom. Eles chamam tias às minhas irmãs e também já os tenho levado à casa delas na Nazaré e de férias comigo". E é de sorriso aberto que os ouve chamar: "Ó mãe!"

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