Em tempos não muito remotos, as mais variadas entidades do nosso espaço mediático, a começar pelos canais de televisão, davam o devido destaque às galas anuais do American Film Institute (AFI), homenageando os melhores de Hollywood. O paradigma mudou: por vezes, temos mesmo a sensação de que há quem pense (ou queira fazer acreditar) que, além dos super-heróis da Marvel e dos desenhos animados da Disney, nada de mais acontece no cinema americano....Pois bem, George Clooney foi a personalidade homenageada pelo AFI na sua 46.ª gala (a primeira, dedicada a John Ford, realizou-se em 1973), difundida nos EUA, no dia 21 de junho, pelo TNT. Tendo em conta os relatos jornalísticos e as imagens disponíveis no YouTube, o menos que se pode dizer da cerimónia é que a pluralidade do seu talento - bem como o seu envolvimento em causas humanitárias, incluindo as tentativas de resolução do conflito do Darfur, sobre o qual produziu o documentário Sand and Sorrow (2007) - foi sublinhada pelos que subiram ao palco, incluindo Alma Clooney, sua mulher, Shirley MacLaine, Cate Blanchett, Laura Dern, Jimmy Kimmel e Bill Murray. Entre as contribuições excecionais, registe-se um vídeo enviado por Barack Obama e a atuação de Miley Cyrus, que presenteou a assistência com uma enérgica interpretação de Man of Constant Sorrow, canção tradicional do Kentucky (o estado onde Clooney nasceu, na cidade de Lexington, a 6 de maio de 1961)..Clooney será, certamente, mais imediatamente identificado através das imagens que, de uma maneira ou de outra, desfrutam de poderes especiais de difusão - desde a interpretação do Homem-Morcego em Batman & Robin (1997), por certo um dos momentos menos felizes da sua filmografia, até aos sofisticados e divertidos anúncios da marca Nespresso. Pergunto-me, por isso, até que ponto tais "evidências" continuam a contribuir para um relativo desconhecimento do seu brilhante trabalho como cineasta..Será uma espécie de assombramento das grandes estrelas masculinas? Recorde-se o caso também sintomático de Robert Redford, realizador de filmes tão admiráveis (e tão pouco conhecidos) como Quiz Show (1994), sobre os equívocos que a linguagem televisiva pode envolver, ou Peões em Jogo (2007), talvez uma das mais subtis narrativas cinematográficas sobre o envolvimento dos EUA no Afeganistão..Das seis longas-metragens que Clooney já dirigiu, duas delas, em particular, ecoam com metódica inteligência alguns conflitos da história social e política dos EUA: penso no recente Suburbicon (2017), uma das abordagens mais brilhantes das relações entre brancos e negros a pontuar a era Trump (mesmo se a sua produção foi iniciada antes), e sobretudo no prodigioso Boa Noite, e Boa Sorte (assim mesmo, com uma vírgula), produção de 2005 que evoca o trabalho da equipa de Edward R. Murrow (1908-1965) na televisão de meados da década de 1950..Murrow foi o apresentador do lendário programa da CBS See It Now, despedindo-se sempre com essa frase emblemática: "Boa noite, e boa sorte." Interpretado pelo excelente David Strathairn (com Clooney a assumir o papel do produtor Fred Friendly), Murrow ficou como símbolo universal de um jornalismo livre e responsável, não abdicando de investigar, noticiar e questionar as práticas do senador Joseph McCarthy, que, invocando a necessidade de anular a influência dos "vermelhos" em todas as zonas da sociedade (incluindo Hollywood), abalou os próprios fundamentos da democracia americana..O filme de Clooney sobre Murrow corresponde, afinal, a um momento invulgar da grande tradição liberal de Hollywood, tradição impossível de reduzir a qualquer programa político, muito menos a qualquer força partidária, uma vez que as suas raízes estão na intransigente defesa do coletivo através das liberdades individuais. Na gala do AFI, realizada no Dolby Theatre, Clooney concluiu o seu discurso de agradecimento celebrando, justamente, a herança de Murrow: "Obrigado, e usando as palavras de alguém muito mais inteligente, palavras de que provavelmente necessitamos agora mais do que nunca: boa noite, e boa sorte."
Em tempos não muito remotos, as mais variadas entidades do nosso espaço mediático, a começar pelos canais de televisão, davam o devido destaque às galas anuais do American Film Institute (AFI), homenageando os melhores de Hollywood. O paradigma mudou: por vezes, temos mesmo a sensação de que há quem pense (ou queira fazer acreditar) que, além dos super-heróis da Marvel e dos desenhos animados da Disney, nada de mais acontece no cinema americano....Pois bem, George Clooney foi a personalidade homenageada pelo AFI na sua 46.ª gala (a primeira, dedicada a John Ford, realizou-se em 1973), difundida nos EUA, no dia 21 de junho, pelo TNT. Tendo em conta os relatos jornalísticos e as imagens disponíveis no YouTube, o menos que se pode dizer da cerimónia é que a pluralidade do seu talento - bem como o seu envolvimento em causas humanitárias, incluindo as tentativas de resolução do conflito do Darfur, sobre o qual produziu o documentário Sand and Sorrow (2007) - foi sublinhada pelos que subiram ao palco, incluindo Alma Clooney, sua mulher, Shirley MacLaine, Cate Blanchett, Laura Dern, Jimmy Kimmel e Bill Murray. Entre as contribuições excecionais, registe-se um vídeo enviado por Barack Obama e a atuação de Miley Cyrus, que presenteou a assistência com uma enérgica interpretação de Man of Constant Sorrow, canção tradicional do Kentucky (o estado onde Clooney nasceu, na cidade de Lexington, a 6 de maio de 1961)..Clooney será, certamente, mais imediatamente identificado através das imagens que, de uma maneira ou de outra, desfrutam de poderes especiais de difusão - desde a interpretação do Homem-Morcego em Batman & Robin (1997), por certo um dos momentos menos felizes da sua filmografia, até aos sofisticados e divertidos anúncios da marca Nespresso. Pergunto-me, por isso, até que ponto tais "evidências" continuam a contribuir para um relativo desconhecimento do seu brilhante trabalho como cineasta..Será uma espécie de assombramento das grandes estrelas masculinas? Recorde-se o caso também sintomático de Robert Redford, realizador de filmes tão admiráveis (e tão pouco conhecidos) como Quiz Show (1994), sobre os equívocos que a linguagem televisiva pode envolver, ou Peões em Jogo (2007), talvez uma das mais subtis narrativas cinematográficas sobre o envolvimento dos EUA no Afeganistão..Das seis longas-metragens que Clooney já dirigiu, duas delas, em particular, ecoam com metódica inteligência alguns conflitos da história social e política dos EUA: penso no recente Suburbicon (2017), uma das abordagens mais brilhantes das relações entre brancos e negros a pontuar a era Trump (mesmo se a sua produção foi iniciada antes), e sobretudo no prodigioso Boa Noite, e Boa Sorte (assim mesmo, com uma vírgula), produção de 2005 que evoca o trabalho da equipa de Edward R. Murrow (1908-1965) na televisão de meados da década de 1950..Murrow foi o apresentador do lendário programa da CBS See It Now, despedindo-se sempre com essa frase emblemática: "Boa noite, e boa sorte." Interpretado pelo excelente David Strathairn (com Clooney a assumir o papel do produtor Fred Friendly), Murrow ficou como símbolo universal de um jornalismo livre e responsável, não abdicando de investigar, noticiar e questionar as práticas do senador Joseph McCarthy, que, invocando a necessidade de anular a influência dos "vermelhos" em todas as zonas da sociedade (incluindo Hollywood), abalou os próprios fundamentos da democracia americana..O filme de Clooney sobre Murrow corresponde, afinal, a um momento invulgar da grande tradição liberal de Hollywood, tradição impossível de reduzir a qualquer programa político, muito menos a qualquer força partidária, uma vez que as suas raízes estão na intransigente defesa do coletivo através das liberdades individuais. Na gala do AFI, realizada no Dolby Theatre, Clooney concluiu o seu discurso de agradecimento celebrando, justamente, a herança de Murrow: "Obrigado, e usando as palavras de alguém muito mais inteligente, palavras de que provavelmente necessitamos agora mais do que nunca: boa noite, e boa sorte."