Ser ou não ser Charlie
Percebe-se que o Charlie Hebdo acertou no alvo quando a recente capa da publicação, com o proverbial Maomé em destaque, ofende em simultâneo a Dra. Ana Gomes e o Grande Mufti de Jerusalém. Sabemos que a eurodeputada se diz "Charlie". Será que o Mufti também o é?
Não me admirava. O país e o mundo estão repletos de Charlies que fingem não entender o conceito, embora o reivindiquem para si com carácter de exclusividade. Aqui em Portugal, por exemplo, vi indivíduos garantir que ser Charlie é criticar o Prof. Cavaco. Ou o governo. Ou a chanceler alemã, vulgo - desculpem a sofisticação - "a Gorda". Assim de repente, fico com a ideia de que, pela extraordinária valentia exigida, o tipo de proezas referidas são do menos Charlie que há. Não tenho notícia de muitos mártires por dizer o que pensam acerca do PR ou da Sra. Merkel. Ou, já agora, de qualquer religião que não venere Alá.
A propósito, alguns dos Charlies de trazer por casa provam o seu heroísmo através dos reparos que, com admiráveis firmeza e regularidade, dedicam à Igreja Católica. Aparentemente, só criaturas sem receio da morte parodiam os peregrinos de Fátima ou condenam os crucifixos nas escolas. Sem receio da morte ou, no mínimo, de um comunicado da diocese de Leiria. Acredito que o comunicado tenha efeitos medonhos (nem é bom pensar). Porém, em matéria de castigo, talvez fique um nadinha aquém de três balas na cabeça ou, para lembrar o Islão "oficial", de 20 de sessões de 50 chicotadas. Fora de brincadeiras: goste ou não das críticas, em última instância a Igreja permite-as. De regresso às brincadeiras: o Papa não.
O Papa compreende que os crentes reajam se atingidos na sua fé. Em conversa com jornalistas, afirmou que é normal uma pessoa dar um soco após lhe caluniarem a mãe. Ou organizar uma chacina após lhe beliscarem a religião, acrescento. Ainda que se declare favorável à liberdade de expressão, o "bom Papa Francisco" (cito o Dr. Soares) tem desta um entendimento peculiar, restrito aos seus próprios limites. Uma tese sobre o terrorismo islâmico culpa a falta de uma autoridade a que todos os muçulmanos obedeçam. Azar dos Charlies autênticos. A sorte dos Charlies postiços é a existência de uma autoridade a que todos os católicos desobedecem.
Terça-feira, 13 de Janeiro
O Mistério da Educação
O Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) informa que os alunos da segunda classe dominam escassamente o Português (mas apenas na escrita, na gramática e na leitura) e a Matemática (não entendem o conceito de igualdade e mostram dificuldade em contar dinheiro). Em Física, Botânica, Plasticina e Latim são fortíssimos, presume-se.
Isto é grave? Vamos com calma. No que respeita ao Português, o próprio IAVE prova que a respectiva compreensão é sobrevalorizada. Veja--se um excerto do referido relatório: "Sugere-se que seja dedicada especial atenção ao significado do sinal de igual (que estabelece uma relação de igualdade dos valores apresentados em cada um dos lados do sinal), trabalhando-se no sentido da passagem de uma visão "procedimental" (a seguir ao sinal de igual coloca-se o resultado) para uma visão relacional." Quem fala assim possui, evidentemente, uma relação complicada com a língua (ou uma visão relacional míope da mesma), pormenor que não impediu os senhores do IAVE de emitir palpites alusivos.
Quanto à Matemática, o facto de as nossas crianças desconhecerem a igualdade é capaz de vir a ser-lhes útil num futuro em que, a julgar pelos indícios de analfabetismo, não terão grande legitimidade para reivindicá-la. E no que toca à contagem de dinheiro, o salário mínimo ou o subsídio de "inserção" contam-se num instante. Excepto, claro, no caso dos felizardos que consigam emprego num dos diversos, pedagógicos e indispensáveis organismos do Ministério da Educação.
Quarta-feira, 14 de Janeiro
Lindo serviço
Não tinha Maria Rueff por humorista até ler, há dias no DN, o comentário da senhora ao novo administrador da RTP para os conteúdos: "Conheço o Nuno Artur Silva há 20 anos. No fundo, o que eu quero mesmo é que ele devolva à RTP a capacidade de ser Charlie."
Além de engraçadíssima, a frase abre um mundo de possibilidades para a futura programação do canal público. "Ser Charlie" significa que se vai transformar o Prós e Contras num espaço de achincalhamento de Maomé? Ou que o Telejornal reservará meia hora para o inventário dos atentados em nome do islão? Ou que, numa emissão especial da Praça da Alegria, os estúdios da estação acabarão destruídos à bomba? Ou que a próxima administração admite morrer pela liberdade?
Pensando bem, qualquer das hipóteses é pouco provável. O mais certo é que, a fim de "ser Charlie", a RTP seja apenas aquilo que sempre foi: uma estratégia para retirar dinheiro de todos de modo a patrocinar meia dúzia. Dito de outra maneira, quem paga não escolhe e, com aquele tipo de coragem que não se distingue do descaramento, quem recebe não se importa. Não é o lendário serviço público, mas é um lindo serviço.