Ser e não ser uma criança em Hollywood
Em 2013, quando recebeu o Prémio Cecil B. De Mille, da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood, a entidade que atribui os Globos de Ouro, Jodie Foster fez questão em associar a distinção à celebração da sua idade: 50 anos. E lembrou: "Podem crer, 47 anos neste negócio é muito tempo." As contas não estavam erradas: foi aos 3 anos que participou num anúncio do protetor solar Coppertone, depois começando a surgir em diversas séries televisivas, para se estrear no cinema em 1972, em Napoleão e Samantha, uma produção dos estúdios Disney.
Não seria preciso evocar tais memórias para reconhecer a importância que a infância, vivida ou imaginada, adquiriu na sua obra. A sua estreia como realizadora, em 1991, com Little Man Tate (entre nós intitulado Mentes Que Brilham) é exemplar: o filme expõe a existência angustiada de Fred Tate (Adam Hann-Byrd), um menino de 7 anos cujos dotes de inteligência o transformam numa espécie de pária, tanto na escola como no plano social; Jodie Foster assumia o papel da mãe de Fred, num gesto carregado de simbolismo artístico - ela podia, afinal, libertar-se do cliché de "criança-prodígio".
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Nada é tão esquemático, como é óbvio. A transfiguração da atriz começara muito antes quando, aos 13 anos, interpretou a personagem de Iris, a adolescente que se prostitui em Taxi Driver, de Martin Scorsese. Mais do que isso: ao lançar-se na realização, Jodie Foster tinha já no seu curriculum os títulos que lhe valeram dois Óscares de interpretação: Os Acusados (1988), de Jonathan Kaplan, e O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme. Dir-se-ia que a sua obra como realizadora pode ser lida como uma autobiografia paradoxal, assombrada por uma desencantada interrogação: quando entramos na idade adulta, para onde vai a infância?
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A pergunta está longe de ser banalmente nostálgica. Nada a ver com o lugar-comum piedoso segundo o qual somos mais "puros" quando sabemos preservar o lado "infantil". Jodie Foster filma algo de mais radical, incomparavelmente mais perturbante. Tudo se passa como se as necessidades do mundo adulto impusessem um jogo de compromissos que nos afasta do desejo de respeitar a verdade.
Vivemos, então, na mentira? Os filmes de Jodie Foster não são, por certo, moralistas, mas não se coíbem de expor o labirinto de simulacros com que, não poucas vezes, os humanos viciam o seu conhecimento mútuo. Veja-se a sua segunda realização, Fim de Semana em Família (1995). Num certo sentido, trata-se de retomar o padrão dos clássicos melodramas familiares de Hollywood, para mais encenando o emblemático Dia de Ação de Graças (Thanksgiving), tão importante no imaginário tradicional dos EUA. A metódica revelação dos recalcamentos familiares acaba por funcionar também como um inventário de várias gerações de atores americanos, com um notável elenco em que se cruzam Holly Hunter e Anne Bancroft, Charles Durning, Robert Downey Jr. e Claire Danes.
Estranhamente ou não, os filmes mais mal-amados de Jodie Foster são aqueles em que a presença de grandes estrelas masculinas parecia garantir a cumplicidade afetiva das plateias. O caso mais revelador é O Castor (2011), em que Jodie Foster volta a integrar o elenco, interpretando a mulher de um estranho, indecifrável e fascinante Mel Gibson. A história do homem deprimido que recusa comunicar (a não ser com o seu castor de peluche) é, de uma só vez, uma dramática crónica de solidão e uma parábola suspensa sobre o deserto da infância que, com ternura e crueldade, assombra os nossos gestos.
Jodie Foster dirigiu ainda Money Monster, thriller centrado num programa de televisão sobre os mercados financeiros. George Clooney interpreta o respetivo apresentador, subitamente sujeito a um teste de sobrevivência quando o seu estúdio é ocupado por um homem armado (Jack O"Connell), um jovem arruinado por ter seguido as sugestões dadas no programa e comprado determinadas ações...
Para além da sua inteligência narrativa, não há muitos filmes contemporâneos que, com tamanha frieza, digam duas rudimentares verdades: primeiro, que os movimentos financeiros estão concebidos para não proteger os pequenos investidores; segundo, que a televisão pode ser uma irresponsável máquina de impostura.
No seu discurso nos Globos de Ouro, Jodie Foster afirmou a sua orientação sexual (citando, em particular, Cydney Bernard, a mulher que foi sua companheira e permanece sua fiel confessora), ao mesmo tempo evitando assumir-se como agente de qualquer discurso panfletário. No limite, reconheceu-se como personagem dos outros e, com festiva ambiguidade, referiu-se a si própria na terceira pessoa: "Jodie Foster esteve aqui, ainda estou, quero ser vista e profundamente compreendida e não estar demasiado sozinha. Obrigado a todos pela companhia."