Sépideh Radfar viveu a criação da República Islâmica aos 14 anos

Uma adolescente de 14 anos tem os seus interesses particulares, a alegria de Sépideh Radfar com a criação da República Islâmica do Irão, faz 40 anos na segunda-feira, foi ter de estudar menos para passar de ano.
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"Fiquei muito feliz (...) como adolescente (...) as escolas foram fechadas oficialmente antes da revolução e depois. Para concluir o ano o Ministério da Educação anunciou a eliminação de quase dois terços (da matéria) (...) para a avaliação final. Era a felicidade completa", recorda em entrevista à agência Lusa.

"Lembro-me perfeitamente", adianta, descrevendo como com as colegas queimou a parte dos livros de estudo com os capítulos da matéria que já não era necessária.

"Por exemplo, os livros antes da revolução, no início tinham sempre a fotografia do rei, da rainha e do príncipe, estas (páginas) também foram para o fogo porque era a revolução, era a nova república que estava instaurada. Esta fogueira para mim é uma boa recordação (...) como adolescente", disse a atualmente diretora do Centro de Iranologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Filha de um general do exército e de uma diretora de uma escola pública, a muçulmana Sépideh Radfar frequentava a escola católica francesa Joana d'Arc em Teerão, um colégio feminino, enquanto os dois irmãos aprendiam na congénere São Luís.

"Estava num contexto muito especial (...) um ambiente muito fechado", indica, lembrando que as alunas chamavam à escola a Bastilha de Teerão - numa referência à prisão em Paris tomada durante a revolução francesa de 1789 - que tinha as freiras como guardas.

"Não havia possibilidade de participação em nenhuma manifestação fora da escola (...) os pais estavam descansados", adianta.

A professora universitária diz que ainda assim estava "por dentro" dos acontecimentos, lembrando ouvir comentários das freiras "muito felizes por a França ter acolhido o ayatollah" Ruhollah Khomeini.

A França foi o último país de exílio de Khomeini, antes de regressar ao Irão, depois de vários meses de manifestações nas ruas e exatamente dois meses antes da instauração da República Islâmica, da qual foi o primeiro Líder Supremo, a mais alta autoridade política e religiosa da nação.

A escola Joana d'Arc era frequentada pelas filhas de "uma elite iraniana", "pessoas de alto nível do regime do Xá", mas também "filhos da oposição" -- Sépideh Radfar foi colega das filhas do primeiro Presidente do Irão, Abolhassan Bani-Sadr - , além de "muitos filhos de diplomatas".

"Na própria escola havia partidos, havia discussões, debates, muito inocentes (...) devido à idade (...), mas vivemos isso plenamente", refere a professora de língua e cultura persa.

Com um governo controlado pelo clero e leis baseadas na 'sharia' (lei islâmica), a República Islâmica constitui-se contra o Ocidente e os seus costumes, proibindo o vestuário, a maquilhagem, a música e o cinema ocidentais.

A obrigatoriedade do uso do véu islâmico não chega com a instauração do novo regime a 01 de abril de 1979, terá sido "em 1981 ou 1982", segundo Sépideh Radfar, precisando que no início era obrigatório "apenas nos espaços públicos", como ministérios, universidades.

Recorda andar com um lenço na mala que colocava na cabeça à entrada daqueles locais e mulheres que passaram a usar o véu "com convicção (...) porque ficou misturado ideologia e religião".

"(...) era difícil, não escondo, mas também não era muito rigoroso no início (...) Para mim (...) o véu é mais um véu interior (...) é a nossa postura (...) mas eu fui criada numa família de militar, é lei é para respeitar, ponto final. Não havia discussão", refere.

Mudanças para a sua vida resultaram ainda da reestruturação dos currículos dos cursos universitários. "Duas matérias entraram nesses cursos obrigatórios. Era a língua árabe (...) clássica (...), mais relacionada com o Alcorão ou ensino religioso" e os "princípios da ideologia islâmica e da filosofia islâmica", diz.

Devido a isso e ao facto de a escola francesa não privilegiar o estudo da história, língua e cultura persas esteve um ano em casa a preparar-se para a entrada na universidade.

Sépideh Radfar recorda que as coisas se foram alterando gradualmente, mas também que estava sobretudo centrada na sua vida.

"Eu tinha um pai muito duro, militar. Ele tinha-me dito: entras na universidade e terás liberdade completa. (...) No ano que fiquei em casa pós-revolução o meu objetivo é garantir a minha liberdade", diz.

Entrou na universidade e no segundo ano do curso foi viver seis meses sozinha para Isfahan, no centro do Irão, para ajudar no "lançamento de um laboratório fonético do grupo de francês".

"As leis começaram a marcar um pouco a diferença entre mulheres e homens, mas eu na minha casa tinha a proteção do meu pai", indica, referindo que as regras eram iguais para ela e para os irmãos e que "isso não se alterou".

Muito mais que a revolução e a instauração da República Islâmica, o que marcou "profundamente" Sépideh Radfar foi a guerra Irão-Iraque, que começou em setembro de 1980 com a invasão do território iraniano pelo país vizinho e que durou oito anos.

Considera "inimaginável" o Irão ter entrado numa guerra após a revolução, quase sem "conseguir respirar", e que isso prejudicou as "evoluções internas" do regime.

A nível pessoal teve o pai no comando da guerra e os dois irmãos a combater e recorda as alturas em que esteve sozinha com a mãe em casa, que não a abandonavam mesmo quando havia bombardeamentos porque o "telefone era o centro do contacto para todos os membros da família".

"Não foi fácil (...) a guerra marcou-me muito mesmo", confessa a iraniana, que veio para Portugal em 1995.

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