"Sentem-se como em casa, ouvem a língua materna, estão noutro mundo"
As crianças que fogem da guerra na Ucrânia representam 35,2% dos refugiados acolhidos em Portugal, mas apenas 10 % se inscreveram nas escolas portuguesas. Têm a esperança de poder regressar ao país em breve. Enquanto não acontece, frequentam as aulas ucranianas e acompanham as matérias da escola original à distância. Acontece todos os sábados na EB Pedro Santarém, em Benfica, escola que passou de 60 para 210 alunos ucranianos, um número que se tornou muito flexível com a guerra.
"Estão sempre a chegar novos alunos. Ainda hoje [sábado] chegaram mais. Temos cerca de 150 refugiados, não consigo dizer quantos são porque está sempre a mudar. Também temos uma aluna que veio e já saiu, os pais decidiram regressar à Ucrânia", explica Neya Pidperyhora, professora de História, uma das coordenadoras desta escola criada pela Associação de Ucranianos em Portugal. São 13 turmas no total.
Aos sábados, entre as 9h00 e as 16h30, as salas de aula, recreios e refeitório enchem-se com as crianças ucranianas que seguem o ensino do seu país, entre o pré-escolar e o 11.º ano, como se fosse um dia de semana escolar. Antes do início da invasão da Ucrânia, a 24 de fevereiro, muitas também frequentavam o ensino português, o que agora deixou de ser maioritário.
Explica a professora que seguem as aulas online das escolas que frequentavam na Ucrânia, com exceção das que foram destruídas pelas bombas, estas situadas no Leste do país, em Mariupol e Kharkiv. Fizeram um acordo com três estabelecimentos de ensino de Lviv para que essas crianças e jovens possam assistir às suas aulas pela internet.
Lena Nadezdina, 16 anos, frequenta o 11.º ano e vivia em Kharkiv. Chegou há duas semanas, prepara-se para completar o ano letivo do ensino ucraniano, que deveria terminar em maio, pelo menos antes de 1 de junho. Com a guerra, as professoras não sabem se será prolongado.
A sua atual turma tinha nove alunos e, nas últimas semanas, passou a ter 21. E poderá esticar ainda mais, já que a direção da escola ucraniana pretende acolher todos os estudantes refugiados que a procurem, acrescentando mesas e cadeiras e desdobrando-se em novas salas.
DestaquedestaqueApenas 10 % se inscreveram nas escolas portuguesas
A jovem chegou a Portugal com a mãe e a irmã, mais nova, que frequenta o 8.º ano no mesmo estabelecimento. "A zona onde vivia foi bombardeada, a minha escola foi destruída. Tive muito medo e só queria um lugar seguro para viver." Não escolheram viver em Portugal - fugiu para a Polónia, atravessou a Alemanha e chegou a França, onde uma carrinha de voluntários os trouxe para Lisboa.
Não escolheu o país mas está a gostar do que vê e agora admite ficar se os pais assim o entenderem. "Fui muito bem recebida, os colegas são simpáticos, está tudo OK", diz Lena. A mãe já está a trabalhar numa pastelaria. A sua maior preocupação é o pai, obrigado a ficar na Ucrânia. E que lhes vai dando notícias do seu país, transmite-lhes só desgraça: "Muita destruição, mas o nosso apartamento não está destruído."
A professora Neya explica que nestes sábados que frequentam a escola acabam por se abstrair da guerra, encontrar um pouco do que deixaram para trás. "Vêm para Portugal, um país desconhecido e que fala outra língua, no dia-a-dia não conseguem perceber o que se está a passar à sua volta. Aqui, na escola, sentem-se como se estivessem em casa, ouvem a língua materna, estão noutro mundo, no seu mundo."
Cada sala de aula tem a inscrição da turma do ensino português e a do ucraniano, esta com as cores azul e amarela. O país está também presente nos placards, com cantinhos dedicados à história e à cultura ucranianas. E que se tornam pequenos para receber sacos com bens doados, nomeadamente brinquedos.
No último sábado iniciaram os festejos da Páscoa pela data da Igreja Católica Romana, que ontem celebrou o domingo de Ramos. Na Ucrânia tem lugar no próximo domingo e, em vez do ramo de oliveira, tem um de salgueiro, o que não é fácil encontrar em Portugal. As crianças fizeram os seus ramos com cones cheios de ovos de chocolate.
O ingresso de um aluno refugiado na escola é antecedido de uma conversa com os pais (quase sempre as mães), para saber qual é a situação da família, como vivem e em que condições, se necessitam de alguma coisa. Os estudantes que frequentam habitualmente a escola ajudam a integrar quem chega. E quem chega apoia depois os últimos a entrar.
"Os alunos mais pequenos adaptam-se mais rápido, são os do 7.º/8.º ano, não estão tão fechados à mudança", diz Neya Pidperyghora. Serão também os mais velhos os mais reticentes em frequentarem as aulas em Portugal.
Uma realidade que é bem visível nas salas mais preenchidas, as dos mais novos, e também no refeitório. Abre às 12h15 e é onde todos podem comer seja os alimentos que trazem de casa, seja as refeições previamente entregues por uma empresa. A hora de refeição é acompanhada pelos professores, 17 (seis no 1.º ciclo e 11 no básico e secundário), além dos três que estão com a pré-escola. Todos voluntários, todos mulheres, à exceção do professor de Informática.
Neya Pidperyghora, 40 anos, está em Portugal há 17, vive com o marido e o filho, de 22 anos, estudante universitário, em Alenquer, onde é administrativa. Há 14 que dá aulas na escola e não se lembra de atravessar um momento tão doloroso.
"Um aluno que é de Mariupol chegou ao pé de mim e disse: "Professora, foi muito difícil chegar a Portugal, estamos vivos, estamos bem, é o que importa, mas está tudo destruído. Nem imagina." Uma criança de 10 anos e que assistiu a tudo isto! Só me apetece abraçá-los. Dou-lhes o meu número de telemóvel para ligarem sempre que precisarem, mesmo que seja só para conversar", conta.
Pensa que os refugiados que têm familiares em Portugal, que podem contar com uma rede mais próxima, que vão conseguindo trabalho, poderão ficar algum tempo. Mas os outros querem regressar rapidamente à Ucrânia, logo que a guerra termine. "Temos esperança de que acabe rápido, mas sabemos que não pode ser hoje ou amanhã. Acordamos com a esperança de ouvir: a vitória é nossa. É uma esperança", reconhece a professora.
É de Khmelnitskiy, cidade que fica junto à Polónia, onde ainda vivem os pais (que não querem deixar a Ucrânia). Têm estado afastados dos bombardeamentos e da invasão russa, mas com muito medo do futuro. "Durmo com o telemóvel ligado, com medo que aconteça qualquer coisa de noite - as coisas más acontecem de madrugada. O meu dia começa com um telefonema para os meus pais. Fico feliz quando os ouço dizer: "Está tudo bem, passámos bem a noite".
Neya acompanha os pais a quatro mil quilómetros de distância, pelas televisões portuguesas e internacionais, mas sobretudo pelo Telegram, uma rede social que informa em tempo real. Por exemplo, ouve as sirenes para as pessoas se abrigarem ao mesmo tempo que na Ucrânia. "As imagens, as notícias, são terríveis, não posso deixar de acompanhar. Mas já desliguei os alertas."
Pavlo Sadokha, presidente da Associação de Ucranianos em Portugal, salienta a pouca presença das crianças ucranianas no ensino português. "Tivemos uma reunião no Ministério da Educação, onde nos disseram que apenas mil estavam inscritas nas escolas. Não é que não queiram inscrever-se, o problema é que ainda não estão decididos. Outro problema é a Segurança Social, não se inscrevem. Há pessoas que acreditam que vão regressar à Ucrânia dentro de um mês, até já tenho pedidos de duas que querem regressar."
Os refugiados vindos da Ucrânia registados no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras estão perto de atingir os 30 mil, maioritariamente mulheres, muitas crianças. Mas há um grupo a que a a associação quer dar destaque: os de 65 e mais anos. "Quando falamos de refugiados, falamos de crianças e jovens, mas não se fala das pessoas da terceira idade, não há nada para elas", lamenta o dirigente. No distrito de Lisboa, que recebeu um terço das pessoas (10.623), 540 têm mais de 65 anos, ou seja, 5 %.
O centro chamar-se-á União dos Ucranianos em Portugal e o projeto foi apresentado à Câmara Municipal de Lisboa, a quem pediram instalações. Prestará apoio psicológico, jurídico, humanitário, e terá aulas, incluindo uma universidade para a terceira idade.
É uma extensão do trabalho desenvolvido no call center criado desde o primeiro momento para apoiar os refugiados. Pretende fazer "a logística de formação de grupos de refugiados na Ucrânia Ocidental, organizando a sua chegada à fronteira polaca e, depois, em cooperação com as autoridades portuguesas e voluntários, transportando-os para Portugal, encontrando alojamento adequado, providenciando as necessidades básicas nos postos de ajuda humanitária", refere o projeto. Quem irá trabalhar no centro são os refugiados que já cá estão e vão ajudando quem chega.
A associação vai candidatar-se ao programa da Fundação Calouste Gulbenkian para os ucranianos até aos seis anos que não encontram resposta nas creches ou jardins-de-infância nas zonas do país onde vivem, na linha dos Grupos ABC- Aprender, Brincar, Crescer.
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