Sensatez e paz social

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Num momento em que vivemos uma nova crise social resultante da forte inflação - em particular dos preços dos bens alimentares e da energia - e da perda progressiva do rendimento das famílias, associada ainda a uma incerteza na ordem mundial, o Governo anunciou há dias um conjunto de medidas para a habitação.

Com este pacote de estímulo ao acesso à habitação, o executivo intervém procurando responder ao problema da habitação que se vem agravando. Como se sabe, vivemos um período de especulação imobiliária que pressiona sobretudo os agregados familiares de rendimento médio, uma vez que os preços da habitação aumentam muito mais do que o rendimento médio das famílias e esta situação traduz uma insatisfação legítima deste segmento da população.

Contudo, este pacote de medidas suscita algumas questões, desde logo jurídicas, em matéria de direito de propriedade privada versus arrendamento forçado. Depois, porque se o Estado é proprietário de diverso património imobiliário devoluto é pela reabilitação de todo esse património que deve começar por responder a esta crise. De referir que esta proposta de arrendamento forçado para as fracções autónomas e prédios urbanos arrisca aumentar a conflitualidade social. E se vivemos já um nível de conflitualidade social elevado, com o mal-estar vivido nos serviços públicos de educação e de saúde, importa que não se amplie mais esta conflitualidade, que vai crescendo no actual momento de crise social.

Em Portugal, a consciência social tem evoluído no sentido de conferir prioridade à ideia de coesão social. Neste percurso, a intervenção estatal nas diversas esferas do domínio social vem exigindo capacidade de diálogo e a ponderação sensata das melhores políticas públicas.

E cabe não ignorar que o sector social e cooperativo tem sido um inquestionável pilar do desenvolvimento económico e social do nosso país, razão pela qual - na perspectiva das políticas públicas - esta será uma resposta estratégica, alicerçada no reconhecimento de que este sector da economia contribui de forma decisiva para a criação de riqueza e de emprego e, em grande medida, para a simultânea promoção da coesão social e da racionalização dos recursos públicos, dada a sua capacidade de gerar mais oferta social, particularmente da habitação.

A Constituição da República Portuguesa acolhe, com centralidade, princípios relativos ao cooperativismo e, de acordo com o disposto nos n.º 1 e 2 do artigo 61.º CRP (Iniciativa privada, cooperativa e autogestionária), tendo em conta o interesse geral, é reconhecido o direito à livre constituição de cooperativas. E se um fracasso das políticas públicas de habitação implicará a destruição do Estado de bem-estar, é vital a aposta no terceiro sector da economia portuguesa. Esta aposta será crucial para revitalizar novos modelos de interacção entre o Estado, a sociedade civil e o mercado, representando um dos pilares da estratégia de desenvolvimento integrado do país.

A liberdade de empresa constitui, nas suas diversas manifestações, um instrumento de prossecução de fins colectivos; e como tal tem uma dupla dimensão: uma liberdade pessoal fundamental e uma liberdade institucional. A iniciativa cooperativa corresponde a uma forma colectiva especial de organização e exercício de uma actividade económico-produtiva e, nessa medida, funciona como alternativa às formas societárias pelo que, por exemplo, a construção de imóveis por cooperativas de habitação permitirá aumentar a capacidade de habitação em território nacional.

Se o fim do Estado Social é coadjuvar os seus membros, isto é, proporcionar-lhes bem-estar social, reflectir sobre a realidade multidimensional da habitação em Portugal implica considerar que o reforço do sector social poderá representar uma importante resposta ao problema da habitação do país e gerar mais oferta a custos inferiores.


Professora universitária e investigadora

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