Existem certamente poucos escritores tão minoritários e obscuros como Maria Gabriela Llansol. E poucos que tenham concentrado de tal forma o elogio dos críticos e o interesse da universidade. Não estamos exactamente face a um «consenso» Llansol é também verberada pelos muitos que gozam com grande fanfarra com os textos «incompreensíveis». Bénard da Costa escreveu que não há cretino que não goze com Manoel de Oliveira: o mesmo se passa com a escritora de Um Falcão no Punho. Num e noutro caso, estamos sempre emparedados entre os incondicionais, que proclamam a genialidade de cada obra, e os detractores acéfalos, que optam pelo registo de paródia e reductio ad absurdum. É preciso, pois, um caminho intermédio..Julgo que o grande «problema» reside no facto de Maria Gabriela Llansol escrever geralmente em prosa, tendo mesmo ganho o Grande Prémio de Romance e Novela da APE. Ora, a prosa, a ficção, o romance, geram determinadas expectativas, e expectativas geralmente prosaicas. A ficção é o reino da frase «a marquesa saiu às cinco da tarde». E ainda mais na literatura portuguesa, que sempre preferiu o «realismo» mais rasteiro e sempre marginalizou a escrita experimental. Nuno Bragança, Ruben A. e Maria Velho da Costa são três excelentes exemplos de que a «ficção» não está condenada à marquesa que sai às cinco. Acontece que Gabriela Llansol está ainda um passo adiante dessa escrita experimental não é a ficção que lhe interessa, mas apenas um conceito fluido de «narrativa», conceito muito contaminado pela poesia. É mesmo provável que só os leitores assíduos e exigentes de poesia se atrevem a entrar neste universo. Manuel Gusmão, no posfácio à reedição (na Assírio) dos Contos do Mal Errante, escreve mesmo que se trata de um «universo em expansão». Gusmão explica que Llansol criou um «mundo textual» que retoma, em cada obra, personagens, frases, tropos. Como se fosse um work in progress..Pensemos num texto breve também agora reeditado, O Raio sobre o Lápis, com desenhos de Julião Sarmento (a edição original foi publicada pela Europália, em 1991). Que texto é este? É uma variação sobre temas da obra de Llansol. Quer dizer é para quem conhece bem a obra. Ou seja: é um texto para quase ninguém. Escrever para quase ninguém é tão admissível como escrever para quase toda a gente. E lança certamente mais desafios. Com os autores obscuros ficamos sempre entre a recusa imediata (porque «não se entende») ou o fascínio embaraçado («se não entendo preciso perceber por que não entendo»). Suponho que este texto curto (tal como Amar um Cão, 1990, ou Holder, de Holderlin, 1993) faz mais sentido como poema. Um poema cheio de fulgurações e zonas negras, como os poemas de Herberto. O imaginário de Llansol é completamente textual , com citações de Rilke e Swedenborg. Mas procede sobretudo a uma espécie de antropomorfização das frases. Daí todo o costumeiro aparato de negritos, travessões, itálicos, espaços em brancos. A prosa de Llansol, como, digamos, a poesia de Ana Hatherly, deve ser entendida num contexto experimental, fora do qual é naturalmente ridícula (mas convém lembrar que é possível fazer pouco mesmo de versos de Camões, se formos suficientemente manhosos). Llansol constrói cenas e amplifica essas cenas. Cenas que, em si mesmas, são comuns (a infância, a natureza, um passeio na praia). Noutros casos, é apenas uma perspectiva quase cubista sobre um animal (um sapo, um cão, uma gaivota) ou sobre um objecto (uma arca, uma bilha, a máquina de escrever). Sobre estes motivos simples é lançada uma espécie de «percepção difusa», semelhante a vermos alguma coisa com os olhos semicerrados..É por isso que Llansol se refere a «níveis de existência» a intensidade e a interioridade convocam uma experiência da escrita e da leitura intensamente subjectivas. Há nisso muitos perigos certas passagens são realmente intragáveis de pretensão e opacidade, mas noutras, como tantas vezes acontece na poesia, há momentos de fulguração. Uma coisa de nada passa por uma «névoa de transfiguração», por uma «metamorfose flutuante» que faz do texto, no melhor sentido possível, um amontoado de palavras. Essa frase, que em geral se usa como crítica, faz aqui sentido como elogio: a escrita de Llansol é um amontoado de palavras. Nalguns momentos, um esboço de figuras e de narrativas procura emprestar alguma coerência (como nas obras dos anos 80). Noutros casos, a prosa é insignificante porque só faz sentido enquanto linguagem. Na passagem da pintura representativa para a pintura dita abstracta, também houve fúria e ranger de dentes. É nessa passagem, e depois dessa passagem, que devemos compreender esta escrita. Não necessariamente para a aceitarmos (o normal é que a maioria esmagadora dos leitores não perca um minuto com textos assim), nem para papaguearmos piadas de café, mas para procurarmos uma determinada paixão da frase (a mesma que encontramos na poesia)..A minha experiência pessoal é de alternância entre esses estados, por vezes quase página a página ou parágrafo a parágrafo. Se não embarcarmos em pretensões excessivas, podemos encarar este work in progress de modo mais adequado. Certas passagens de Llansol são memoráveis, outras fracassadas e outras péssimas. Como acontece quase sempre na escrita experimental. Em O Raio sobre o Lápis, existem momentos de que gosto muito, como este «sempre no caminho da viagem, tu pousaras sobre uma sequência de montanhas , num pequeno povoado que coroava a mais alta, e de onde se avistava a serra de Ossa, com intermitências de sobreiros, oliveiras, e plátanos de rotação de luz inesquecível; eu estava com um amigo muito próximo, a cumprir a penitência imposta pelo amor (...) que é ascender de novo» (pág. 54). É evidentemente parte de um poema (o «tu» do texto é um falcão), com a fragilidade própria da escrita poética. Já não me parece nada interessante a excessiva remissão para outros textos, que põe cada página num momento determinado do tal work in progress e que evidentemente só faz sentido para quem conheça a obra toda. Ou para quem se interesse pela obra apenas como amontoado de palavras. Um fascínio que, convenhamos, tanto dá para o bem como para o mal.