Semanologia: A falsa inocência
Há umas semanas atrás, respondi ao Questionário Proust, no Diário de Notícias. À pergunta "O que detesta acima de tudo?", respondi de forma telegráfica: "A falsa inocência". Fiquei, depois, a pensar que deveria ter sido menos lacónico. É por isso que retomo o tema.
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O que é a inocência? A inocência é um dom que nos aproxima da Natureza. A Natureza é neutra em questões morais. E a inocência corresponde a uma característica, não a um ato da vontade. A diferença entre bem e mal dificilmente pode tomar em conta a geografia da inocência, pois a distinção só existe para quem conhece a malícia, coisa fora do território inocente. De facto, uma pantera, um melro, um jacarandá, um gafanhoto ou uma lagosta, até prova em contrário, vivem na inocência. Não há malícia nas garras que determinam o destino da gazela, no bico que tece o ninho, na floração de maio, na infestação de um campo de milho ou nas tenazes de um crustáceo. A malícia é humana, corresponde à consciência do mal. Ela põe na organização do espírito e dos dias o problema da idade, pois a passagem do tempo afasta a inocência. A Humanidade nasce perto da Natureza, na ignorância de poder fazer mal. Depois, sob o que se chama crescer, colocam-se sobre o viço do começo os anéis da consciência, que se articulam com a vontade e o poder.
CitaçãocitacaoA vida dá a oportunidade de olhar em frente com a clareza dos valores que se prossegue ou de negar essa hipótese, colocando os olhos como cortinas cerradas.esquerda
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Ninguém, na sua humanidade, cresce inocente. Cobrimo-nos de anéis, mais ou menos brilhantes, e a composição de cada ser humano é um exercício criativo de articulação da consciência, da vontade e do poder. O caminho humano que afaste, em diversos graus, a malícia, não corresponde nunca ao retorno ao estado primacial da inocência, pois tal é impossível, se não formos tomados pela senilidade ou pela doença mental. Interpela-nos, desde o conhecimento da malícia, saber o que fazer com ela. Vive-se com a malícia e o seu uso pode ir desde a simples ironia ao desejo de fazer mal, até à ação ou omissão maldosa. A escolha maliciosa encontra-se entre a consciência da infração de princípios que organizam a paz interior e da comunidade e o objeto do desejo. E seja no menino que empurra maldosamente o colega no recreio ou no assassino em série, os graus da malícia correspondem à individualidade de cada ser humano.
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O humano vive com a verdade e a mentira, sendo que nenhuma das duas são inocentes e a sua conjugação é complexa e cheia de zonas cinzentas. Articular a verdade e a mentira com o bem e o mal não é fácil, pois há mentiras bondosas e verdades que fazem mal. O encontro pessoal do bem com o ser e o fazer é exigente e dificilmente escrutinável nas suas razões e resultados. Apesar de se dizer que uma árvore se vê pelos seus frutos, há frutos apetecíveis e belos de más sementes e outros bem pequeninos e quase desprezíveis de um valor incalculável. Quais as justificações e reconhecimentos aceitáveis para tão diferentes cultivos, regados no campo comum dos dias?
A vida dá a oportunidade de olhar em frente com a clareza dos valores que se prosseguem ou de negar essa hipótese, colocando os olhos como cortinas cerradas.
A reivindicação da pureza de quem sabe não ser inocente é comum. Sendo que o estado da inocência é impossível, mas a responsabilidade face à malícia desejável, a reivindicação falsa da inocência, responsabiliza mais os maiores detentores de poder. Não se trata só do problema da legalidade. Trata-se, acima de tudo, do problema da justiça. Mais importante que cumprir a lei é ser justo. E a justiça implica não enganar. Quando disse detestar a falsa inocência, referi-me à reivindicação retórica da pureza e à exibição impudica dos bons frutos das más sementeiras ou ainda à exibição de frutos que são belos na aparência, mas bichados no seu interior.
É preferível o ladrão que guarda discretamente o produto do seu roubo, àquele que grita no rossio que tem o peito cheio de medalhas. Ou não? Voltarei ao tema para a semana.