Semanologia - As pessoas sem qualidades
Não há quem esteja completamente desprovido de qualidades, tal como alguém inteiramente qualificado é coisa inexistente.
Que qualidades se deseja, que qualidades se aprecia, que ausência delas faz falta?
A categorização de qualidades é tão subjetiva como o tempo e o lugar a que pertencem, o país, o contexto, o estrato social, a educação e por aí fora.
Há circunstâncias em que "palavra dada, palavra honrada" significa uma inamovível qualidade de respeito por aquilo que se disse. E quem tem a ética do respeito pela palavra dada não anda sempre a dizer ou a repetir publicamente este mantra. Outro exemplo de evidência de pessoa torta é aquela reitera a alta voz: "eu sou honesto". A honestidade não decorre do que se diz sobre a honestidade mas do que se faz a esse respeito. Melhor ser declaradamente desonesto. A honestidade da desonestidade.
Não é evidente cuidar de substantivos e adjetivos sobre a qualidade humana. Porque se não há quem completamente qualificado ou desqualificado, assim também acontece sobre toda e qualquer qualidade ou falta dela. Falando de qualidades morais, nenhuma pessoa é inteiramente honesta ou desonesta, honrada ou desonrada, verdadeira ou mentirosa. Veja-se haver ladrões regidos por códigos de honra a propósito de quem roubam ou de como roubam. Ou socialites educadas que o são inteiramente com os que consideram serem seus pares, transformando-se em arrogantes, ríspidas, agressivas, em relação àqueles a que atribuem estatuto inferior, sendo, amiúde, subservientes, serviçais, aduladoras, em relação a indivíduos identificados como "superiores".
Depois, há as qualidades físicas. Gordos, magros, coxos, estropiados, velhos, jovens, altos, baixos, musculados, franzinos... Os ideais de qualidade física variam. Momentos há em que ser roliço é condição de elegância e prosperidade e outros em que a magreza é um ideal de beleza. Praias para se conquistar o maior bronze possível na pele e montanhas habitadas pelo horror à perda da alvura da cútis. Cidades que precisam de homens barbudos e as que procuram mulheres peludas.
Quando se mistura qualidades morais e físicas, obtém-se gente de traje elegante e conteúdo desonesto, jovens descuidados no vestir e de coração de ouro, mulheres fascinantes no discurso e ácidas nos gestos, crianças aparentemente cândidas de bibe imaculado e cruéis com os coleguinhas, velhos com ar de avô patriarcal e língua afiada... Claro que há misturas positivas, onde se juntam aquelas que são consideradas diversas qualidades de vário tipo.
E mesmo assim, tão subjetivamente se aprecia! A qualidade corresponde a um padrão cultural e a um exercício de afinidades eletivas.
Assim, um ser hediondo para uns, pode ser um exemplo a seguir para outros. A afirmação de poder em dado continente será uma grosseria noutro.
As qualidades que se espera de um amante não são as mesmas idealizadas num político, o que se pretende de uma desportista é diferente do desejado numa cantora lírica.
Mas se o intrínseco e os apodos são relativos, será que tudo se equivale, que tudo diverge? O juízo sobre as formas como as pessoas se apresentam e agem é uma questão menor?
Seremos todos pessoas com qualidades e defeitos só com base na relatividade de valores, genericamente discutíveis e equivalentes? O teste do carro em segunda mão diz-nos o contrário: em quem confiamos para comprar um carro em segunda mão? Ou para deixarmos vulneráveis na sua presença bens materiais ou imateriais que nos são preciosos?
Afirmar a confiança é um reconhecimento sobre a qualidade humana. Vai para lá das camisas de bom algodão, as melhores sedas, os mais sofisticados adornos e as capacidades de oralidade, de escrita, de brilho intelectual e da capacidade de sedução. Confiar é um tributo a qualidades essenciais.
Nos tempos que correm, confiar é um medo maior, face às divergências entre discurso e ação.
E é por isso qualidade grande ser como a muralha por onde o vento, a chuva e a maré perpassam sem a derrubar, em que cada pedra sobre outra é um sólido abraço, protegendo das vergonhas do mundo.