Sem adversários, Biden tem agora de convencer os eleitores de Sanders

Joe Biden vê Bernie Sanders desistir e apoiá-lo. O sucesso do candidato centrista passa por convencer a base de apoiantes do senador independente.
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O senador Bernie Sanders desistiu da corrida à nomeação democrata para as eleições presidenciais e juntou-se a Joe Biden para derrotar "o presidente mais perigoso dos Estados Unidos". O vice-presidente de Barack Obama piscou o olho ao eleitorado do agora ex-adversário: "Vejo-vos, ouço-vos e compreendo a urgência do que temos de fazer neste país. Espero que se juntem a nós. São mais do que bem-vindos. São necessários."

Em casa a cumprir as diretivas de distanciamento social, Sanders anunciou o fim da campanha, mas não o fim da luta nem do seu movimento.

"A realidade é que estamos a 300 delegados de Joe Biden e o caminho para a nomeação é praticamente impossível. Hoje anuncio a suspensão da campanha." No discurso que foi transmitido através do seu site , Sanders explicou que a "decisão difícil e dolorosa" foi tomada após ouvir a mulher, Jane, e os seus assessores.

"Se achasse que havia um caminho continuaria. Compreendo a desilusão de quem ache que seria possível. Mas vejo a terrível crise que assola o país e um presidente que é incapaz" de enfrentar a crise, referiu.

Sanders voltou a dizer que a sua campanha ganhou a luta ideológica e captou o eleitorado mais jovem. Com os delegados eleitos, explicou, irá à convenção democrata apoiar Joe Biden, "um homem muito decente", mas também "exercer influência".

"Depois, juntos vamos derrotar Trump, o mais perigoso presidente dos EUA."

Por fim, Sanders lembrou que a sua campanha é mais do que isso. "Somos um movimento que acredita que a mudança vem de baixo para cima. A luta continua. A campanha acaba mas o movimento não. A luta por justiça foi a nossa campanha. A luta por justiça vai continuar a ser o nosso movimento", e augurou que o país vai mudar graças ao seu movimento.

"Juntos transformámos a consciência americana quanto ao modelo de nação em que nos podemos tornar e demos um grande passo em frente neste país na luta sem fim pela justiça económica", disse Sanders.

Uma grande apoiante de Sanders, a representante Alexandria Ocasio-Cortez, não poupou nos elogios. "Obrigado por travar duras e solitárias lutas em verdadeira devoção a um movimento popular nos Estados Unidos. Obrigado pela sua liderança, pela sua orientação e pelo seu exemplo. Nós adoramos-te", escreveu no Twitter. Mas os elogios mais significativos vieram do adversário de Sanders.

O grande elogio de Biden

A campanha de Joe Biden respondeu de forma cirúrgica, ao tentar agradar ao eleitorado de Sanders. Uma tarefa que não será fácil: o movimento é fortemente ideológico e os eleitores de Sanders poderão repartir-se nas presidenciais entre a abstenção e o voto em Biden, e até em Trump e noutros possíveis candidatos, como o dos Verdes.

O que explica a forma e o conteúdo do texto de Biden, um rasgado elogio a Sanders, ao seu programa e à sua base de apoiantes. "Bernie realizou algo raro na política. Não se limitou a dirigir uma campanha política; criou um movimento. E não se enganem, penso que é um movimento tão poderoso hoje como foi ontem. É uma coisa boa para a nossa nação e para o nosso futuro. O senador Sanders e os seus apoiantes mudaram o diálogo na América", escreveu Biden.

E prosseguiu: "Questões que tinham merecido pouca atenção - ou pouca esperança de alguma vez passarem - estão agora no centro do debate político. Desigualdade de rendimentos, cuidados de saúde universais, alterações climáticas, universidade gratuita, alívio do endividamento esmagador dos estudantes. Estas são apenas algumas das questões a que Bernie e os seus apoiantes deram vida. E, embora Bernie e eu possamos não estar de acordo quanto à forma de lá chegarmos, estamos de acordo quanto ao objetivo final para estas questões e muitas outras."

A agenda de Sanders

Em 2016, após a desistência de Sanders, este não apoiou de imediato Hillary Clinton, uma candidata mais à direita e cuja imagem estava ligada aos interesses das grandes empresas. Após semanas de negociações, o senador de Vermont colocou-se ao lado da ex-secretária de Estado, em troca de concessões no programa da candidata democrata.

Hillary Clinton comprometeu-se a que os estudantes universitários de famílias com rendimentos anuais abaixo de 125 mil dólares não pagassem propinas; ao alargamento da cobertura dos cuidados de saúde; de introduzir o salário mínimo de 15 dólares por hora; taxar as emissões de carbono; e abolir a pena de morte, entre outras medidas.

Tendo em conta o debate gerado nos últimos meses e a forma como a administração Trump reagiu à pandemia, o tema da saúde irá estar no centro da agenda.

"Ainda antes desta horrível pandemia, uma forte maioria de democratas apoiavam um serviço de saúde universal. Embora os americanos tenham sido repetidamente informados do quão maravilhoso é o nosso sistema de seguros privados baseado no empregador, esses créditos soam hoje muito vazios. O povo americano compreende que não podemos continuar um sistema de cuidados de saúde cruel e disfuncional", afirmou Sanders no seu discurso de quarta-feira.

"Bernie Sanders transformou o debate nacional sobre os cuidados de saúde, fazendo que ideias que não são modestas pelos padrões históricos pareçam ser a alternativa moderada", disse à ABC News Larry Levitt, vice-presidente para as políticas de saúde da Kaiser Family Foundation, que agora acredita no estabelecimento de um "programa opcional de seguro de saúde público".

Derrotas e pandemia

Com os escrutínios de 10 e 17 de março a darem a vitória em oito de dez territórios e o fosso dos delegados eleitos a alargar-se em mais 139 só na Florida, Ilinóis e Arizona, e com a campanha nas ruas cancelada desde dia 10 de março devido à pandemia do covid-19, Bernie Sanders tomou a decisão de desistir da campanha em favor de Joe Biden.

O senador de Vermont, que não fez declarações após os desaires eleitorais de 17 de março, manteve conversas com o pessoal da sua campanha, e ficou no ar logo a hipótese da desistência.

O autodenominado socialista democrático de 78 anos começou a campanha a par com Pete Buttigieg, mas Joe Biden ressurgiu na eleição da Carolina do Sul e depois obteve uma vitória em quase toda a linha na chamada super terça-feira. A isso somaram-se as múltiplas desistências a declararem apoio ao antigo vice-presidente de Barack Obama (exceto Elizabeth Warren, que optou pela equidistância), o que se traduziu em resultados eleitorais e, fator decisivo nas campanhas eleitorais nos Estados Unidos, o consequente apoio financeiro.

Após as derrotas de 10 de março, Sanders disse esta a "vencer a luta ideológica", mas reconheceu estar em desvantagem por ter um problema de elegibilidade. Os seus apoiantes são as gerações mais novas, mas estas representam a menor fatia do eleitorado e a mais abstencionista.

Bernie Sanders, que na campanha democrata de 2016 perdeu para Hillary Clinton, sofreu um ataque cardíaco em outubro de 2019. Regressou à campanha em dezembro, tendo arrastado as maiores multidões para os seus comícios.

O senador quer criar um sistema nacional de saúde americano, impor uma taxa sobre as grandes fortunas (acima dos 32 milhões de dólares) e anular as dívidas dos estudantes (1,6 biliões de dólares, um número equiparável ao que a Reserva Federal Americana injetou nos mercados após o início da crise). O veterano ativista advoga um salário mínimo de 15 dólares por hora.

Já Biden, apesar de alguns tropeções com os factos históricos, como, por exemplo, ter alegado que foi detido por ter tentado visitar Nelson Mandela ou ter participado em protestos contra a segregação quando era jovem, consegue obter o apoio das minorias.

Inimigo comum

Num ponto ambos os candidatos mostraram estar de acordo: o inimigo a combater é o atual presidente e candidato a novo mandato, Donald Trump. "É o presidente mais perigoso da história moderna do nosso país e deve ser derrotado. Tragicamente, temos um presidente que é um mentiroso patológico e dirige um governo corrupto. Obviamente, não compreende a constituição dos EUA e pensa que é um presidente que está acima da lei", disse Sanders.

No último debate entre os dois septuagenários, em 15 de março, Sanders disse não ter a certeza se Biden é homem para levar eleitorados como os jovens e os latinos às urnas. "Tenho as minhas dúvidas sobre como ganhar uma eleição geral contra Trump - que será um adversário muito, muito duro -, a menos que você tenha energia, entusiasmo e a maior participação eleitoral da história", disse Sanders.

Dois dias depois, o ex-vice-presidente norte-americano voltou a dizer que deseja "unir o partido", mas desta vez dirigiu-se em especial ao campo do adversário e aos mais jovens. "Eu estou a ouvir-vos, sei o que está em jogo, sei o que temos de fazer." E prosseguiu: "Sanders e eu não concordamos na tática, mas partilhamos a mesma visão: disponibilizar saúde pública acessível para todos os americanos, reduzir a desigualdade de rendimentos, que aumentou tão drasticamente, e enfrentar a ameaça existencial do nosso tempo, as alterações climáticas."

Trump comenta

Ao saber da desistência de Sanders, Trump utilizou o Twitter para fazer comentário político. "Bernie Sanders está fora! Obrigado a Elizabeth Warren. Se não fosse ela, Bernie teria vencido quase todos os estados na Super Terça-feira!" Depois de atirar as culpas à senadora, afirmou que ela desempenhou o papel que o Comité Democrata queria e piscou o olho aos apoiantes de Sanders: "O povo de Bernie deveria vir para o Partido Republicano."

Logo de seguida tentou explorar as divergências entre os apoiantes do socialista democrático e do restante campo democrata. "Uau. Bernie não está disposto a desistir dos seus delegados e quer mais. O que é isto?"

No discurso em que anunciou a desistência, Sanders foi claro ao afirmar que vai estar do lado de Joe Biden. "Felicito Joe Biden, um homem muito decente, com quem irei trabalhar para fazer avançar as nossas ideias progressistas."

Mas também que irá manter os seus delegados na convenção. E nas primárias que restam (26 estados e territórios) poderá ainda conquistar mais além dos mais 900 eleitos. É uma decisão que cabe aos delegados.

No caso da Nova Jérsia, por exemplo, cujas eleições estão agendadas para julho, Sanders pode ver delegados seus eleitos caso obtenham pelo menos 15% naquela eleição ou, no final de todas as primárias, Bernie Sanders alcançar 15%.

Com a pandemia do novo coronavírus, Donald Trump passou a usar a conferência de imprensa diária sobre a pandemia para permanecer em direto nas televisões durante longos minutos. Ainda que diga na mesma conferência uma coisa e o seu contrário (por exemplo, afirmou na terça-feira que iria reter as verbas para a Organização Mundial da Saúde e 15 minutos depois desmentiu-se), a sua presença tem tido um efeito positivo.

No dia 28 de março, a média das sondagens relativas à taxa de aprovação atingiu uma marca ao nível do início de mandato; apesar de negativa, só havia mais 2,3% de norte-americanos com imagem negativa de Trump do que o inverso, como indica a RealClearPolitics. No entanto, em abril a tendência é a de um regresso a uma margem maior de descontentes. A sondagem com o maior número de inquiridos, 2077, da Quinnipiac, indica 51% de opiniões negativas contra 45% de positivas.

As mais recentes sondagens a nível nacional sobre uma eleição entre Joe Biden e Donald Trump dão também vantagem ao democrata. A da já referida empresa Quinnipiac dá uma margem de 8% de vantagem a Biden, ao passo que a da Economist/YouGov e a da IBD/TIPP dão ambas 6% a mais para o provável candidato democrata.

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