Portugal arranca na sexta-feira, frente à Ucrânia, a fase de qualificação para o Europeu 2020, onde espera marcar presença numa fase final de uma grande competição pela 11.ª vez consecutiva e, desta vez, com o estatuto de campeão europeu em título para defender..Tem sido assim desde o arranque dos anos 2000, com a seleção portuguesa de futebol presente nos principais eventos internacionais (Europeus e Mundiais), a cada dois anos. Para toda uma geração nascida a partir do final dos anos 1990, é esta a realidade do futebol português: a de uma seleção de sucesso presente em todas as fases finais do século XXI e, até, capaz de chegar ao título europeu..Campeonato da Europa ou do Mundo sem uma seleção de Portugal parece agora um cenário impossível, nunca visto por uma geração inteira de portugueses. Mas já houve tempos em que não foi assim. Bem pelo contrário. Antes da viragem do século, Portugal debatia-se com o fatalismo de uma seleção quase sempre às voltas com a calculadora nas fases de apuramento, à espera de milagres de última hora que permitissem um bilhete para o grande palco - como aquele golo de Carlos Manuel em Estugarda, em 1985, contra a poderosa Alemanha (então RFA ainda), que valeu a qualificação para o México 86 de má memória..Até 1998, a seleção nacional apenas tinha estado em dois Mundiais (1966 e 1986) e outros tantos Europeus (1984 e 1996), falhando o apuramento em 21 das 25 fases de qualificação em que participou, depois de não ter entrado na corrida ao primeiro campeonato do Mundo, em 1930. O que deixou muitos dos grandes nomes do futebol português de outras épocas sem a experiência de pisar os grandes palcos das competições internacionais de seleções. Craques que nasceram no tempo errado..A "geração perdida" de 1970."Faltou um grande palco", lembra, resignado, João Alves, que foi um dos grandes jogadores portugueses da década de 1970. Médio criativo, chegou a ser o futebolista mais bem pago no campeonato português, ao serviço do Benfica, jogou nas ligas espanhola e francesa, foi eleito o melhor estrangeiro em Espanha numa época em que por lá jogavam também nomes como Cruyff, Kempes ou Breitner, levou o PSG a gastar 30 mil contos em 1979....Um craque de uma geração que tinha outros nomes marcantes, como António Oliveira (FC Porto, Sporting, Bétis...), Humberto Coelho (Benfica, PSG...), Manuel Fernandes (Sporting), Toni (Benfica) ou Rodolfo Reis (FC Porto) e que terá sido a última geração "perdida" na seleção nacional, vítima do longo hiato que Portugal atravessou entre os brilharetes (terceiros lugares) do Mundial de 1966 e do Euro 1984, num período conturbado também a nível político e social, com a transição do país para a democracia..Alguns nomes dessa geração ainda conseguiram esticar a carreira na seleção até essa fase final do Europeu, em França, como foram os casos de Jordão, Nené ou Lima Pereira, mas a maioria desses jogadores que marcaram o futebol português na década de 1970 ficaram sem a oportunidade de se mostrarem nas grandes montras de seleções, fossem Europeus ou Mundiais..João Alves também poderia ter marcado presença com os Patrícios (como ficou conhecida essa seleção portuguesa) no Euro 1984, mas acabou por ser vítima de um das guerras internas de poder que marcaram esses tempos na seleção nacional..A clubite que atacou a seleção."A minha geração foi de grandes talentos. E o futebol português sempre teve grandes selecionadores, como Pedroto durante uma fase dessa década de 1970, mas a seleção era um parente pobre. Os presidentes dos clubes muitas vezes não queriam que os jogadores fossem às seleções, havia uma clubite enorme e a seleção era maltratada. Lembro-me bem o que eu passava quando ia treinar a Alvalade ou às Antas e o mesmo se passava com os meus colegas dos outros clubes na Luz", recorda o antigo médio, que aos 66 anos voltou às lides de treinador na Académica de Coimbra, onde está a fazer uma excelente recuperação que colocou a equipa a lutar pelos lugares de subida na II Liga.."Eram tempos de uma rivalidade muito acesa no futebol português, sobretudo com a ascensão do FC Porto [de Pinto da Costa e Pedroto] no panorama do futebol nacional, a partir dos anos 1970", refere o historiador Francisco Pinheiro, autor de vários livros sobre a história do futebol português, como o A Nossa Seleção em 50 jogos (1921-2004), escrito em coautoria com João Nuno Coelho..Uma das evidências dessa luta de poder entre clubes na seleção foi "a famosa comissão técnica escolhida depois para o Euro 1984, com quatro treinadores". Uma comissão para agradar a todas as fações - sobretudo as dos três grandes - numa fase de divisão norte-sul ao rubro. Nessa altura, quando chegou a convocatória para a fase final do Europeu em França, João Alves, que se tinha mudado do Benfica para o Boavista, ficou de fora.."Podia ter estado no Euro 84. Tinha estado dez anos no ativo na seleção, fiz uma grande época nesse ano no Boavista, mas não fui convocado. Foi até uma das coisas que me fez abandonar mais cedo a carreira de jogador e passar a treinador na época seguinte", recorda o homem que herdou do avô, Carlos Alves, a tradição e alcunha de "luvas pretas"..Num contexto social atribulado, os fatores multiplicavam-se: "A transição política, o maior peso das lutas sindicais que traz um maior poder reivindicativo também para os jogadores na sua relação com os clubes, a relação de poderes entre os principais clubes e associações que minava a federação e a seleção, uma organização ainda incipiente na FPF... eram vários fatores endógenos e exógenos que faziam que a seleção fosse uma espécie de reflexo do fatalismo nacional, a viver constantemente entre a euforia e a depressão", aponta Francisco Pinheiro..Fases finais maiores, apuramentos mais fáceis.Aqui chegados, convém sublinhar um dos principais fatores de diferença entre esses tempos e os atuais. "Os critérios de qualificação eram bem mais apertados também. Naquela altura só se qualificava o primeiro de cada grupo, não é como hoje", lembra João Alves..De facto, até às qualificações para o Mundial 1978 e para o Europeu 1992, só o vencedor de cada grupo se apurava para as respetivas fases finais das competições. A partir daí, tanto o Campeonato do Mundo como o da Europa foram crescendo em formato, aumentando o número de vagas e de seleções apuradas, o que facilitou também o caminho de qualificação..Para se ter uma ideia, se aplicássemos o antigo critério de apenas uma seleção apurada por grupo nas qualificações para Europeus e Mundiais desde o início deste século XXI, Portugal teria voltado a passar por um hiato de dez anos sem fases finais, entre o Mundial de 2006 e o Europeu de 2016, falhando a presença nos Campeonatos do Mundo de 2010 e 2014 e nos Campeonatos da Europa 2008 e 2012. O que deixaria Cristiano Ronaldo, por exemplo, com "apenas" quatro fases finais no currículo, em vez das oito que tem, consecutivamente, desde que se estreou no Euro 2004..Aplicando o critério inverso, de duas seleções apuradas por grupo (ou pelo menos com o segundo classificado a ter acesso a um play-off), a gerações anteriores, teríamos visto Portugal nas fases finais do Mundial 1962, do Euro 1968, do Euro 1972, do Mundial 1974, do Mundial 1978 e do Euro 1992 - antes do Mundial 1958, Portugal disputou o apuramento sempre em duelos diretos, em grupos de apenas duas seleções, pelo que qualquer comparação é completamente falaciosa..João Alves lembra-se especialmente dos apuramentos falhados para os Europeus de 1976 e de 1980. No primeiro, "um empate em casa com a Checoslováquia, que depois seria campeã europeia, comprometeu a qualificação". No segundo, João Alves marcou o golo da vitória na Noruega, que deixava a seleção portuguesa no comando do grupo a meio do trajeto, mas depois "uma lesão grave no PSG" impediu-o de voltar a dar o contributo nessa fase de qualificação, vendo de fora as derrotas com Bélgica, Áustria e Escócia.."Apesar de alguns grandes jogadores, como o João Alves, o António Oliveira, o Humberto Coelho e outros, a verdade é que essa geração de 1970 também não era tão talentosa quanto a que tinha estado no Mundial de 1966 nem como a que estaria depois no Europeu de 1984", acrescenta o historiador Francisco Pinheiro, que lembra como o momento mais importante desses anos 1970 a presença no Mundialito de 1972, uma prova organizada pelo Brasil e na qual Portugal chegou à final, perdendo apenas para a seleção da casa..Peyroteo e os Cinco Violinos calados pela Guerra.Recuando a fita do tempo, temos então o Mundial de 1966 como o marco da primeira presença de Portugal numa fase final, apenas à nona tentativa. O terceiro lugar da geração de Eusébio, Simões, Coluna e companhia, assente sobretudo na equipa do Benfica que tinha ganho duas Taças dos Campeões Europeus no início da década, trouxe o primeiro grande momento internacional da seleção portuguesa desde que arrancaram os campeonatos do mundo de futebol, em 1930 (os Europeus só arrancaram 30 anos mais tarde, em 1960)..Antes dos Magriços, "a história da seleção nacional é uma espécie de história do fatalismo português, com a seleção a representar as características próprias de um país fechado ao exterior, a viver sob ditadura", contextualiza o historiador Francisco Pinheiro. A somar a isso, as consequências da II Guerra Mundial, que fizeram interromper os campeonatos do mundo e respetivas fases de qualificação entre 1938 e 1950, "afetando uma grande geração do futebol português, que poderia ter vivido um período áureo nos anos 1940, com a figura do Peyroteo e dos Cinco Violinos do Sporting", recorda..O leão Fernando Peyroteo, o maior goleador da história do futebol português, acabou por participar apenas num jogo de qualificação para campeonatos do mundo, marcando o golo luso na derrota frente à Suíça, por 2-1, que deu aos suíços o passaporte para o Mundial de 1938. Quando as provas de seleções foram retomadas, após o interregno da guerra, Peyroteo já tinha terminado a carreira. E os outros "violinos", já na fase final do trajeto, também não conseguiram bater a Espanha (1950) nem a Áustria (1954, aqui já juntamente com uma nova geração onde se destacavam Matateu, José Águas ou Hernâni) para se apurarem para uma fase final.."Essa geração de 50 funcionou um bocadinho como uma fase de renovação que preparou o terreno para aquela geração de 1960 liderada pelo Eusébio", diz Francisco Pinheiro, que salienta no entanto uma outra fase, ainda pré-história dos Mundiais, como aquela que projetou a primeira grande geração de futebolistas portugueses..O avô de Alves nos Jogos Olímpicos de 1928."Foi ainda nos anos 1920, nos primórdios da história da seleção - cujo primeiro jogo se deu em 1921. Uma geração de jogadores que incluía o Cândido de Oliveira, o Jorge Vieira, do Sporting, o Pepe, do Belenenses, ou o Carlos Alves, o luvas pretas original, avô do João Alves, que jogava no Carcavelinhos. Essa seleção foi a que protagonizou o primeiro grande momento internacional do futebol português, ao qualificar-se e chegar aos quartos-de-final dos Jogos Olímpicos de 1928. Convém ter a noção de que, antes dos Mundiais de futebol, era o vencedor do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos que era considerado o campeão do mundo", explica o investigador..Depois, a geração dos anos 1930, com o madeirense Pinga (FC Porto) como figura, teve o primeiro contacto com as fases de apuramento para o Mundial. E não foi bonito. Rejeitado o convite para estar no Mundial de 1930, no Uruguai, a seleção portuguesa entrou na qualificação para o campeonato de 1934. Mas o duelo com a Espanha resultou numa "humilhação", por 9-0, na primeira mão da eliminatória, em Madrid. "Foi uma espécie de vergonha nacional", diz Francisco Pinheiro. "Passou uma péssima imagem internacional do regime e até a Beatriz Costa acabou por imortalizar essa derrota numa canção", recorda..Tempos bem diferentes dos que vivem agora Cristiano Ronaldo e companhia, que nesta sexta-feira vão entrar em campo frente à Ucrânia, para começar a caminhada rumo ao Euro 2020, como os campeões europeus em título..A nova retórica de sucesso.Uma história de sucesso recente que começou a ser escrita com as conquistas das gerações jovens lideradas por Carlos Queiroz nos anos 80 e 90, aponta João Alves. "Foi esse trabalho, de Carlos Queiroz, Jesualdo Ferreira e outros, nas camadas jovens da seleção, que criou a organização que permitiu ao futebol português melhorar muito", diz o treinador da Académica, sublinhando que "foi a partir daí que começou a haver alterações importantes no futebol português. Dantes os jogadores chegavam com meia dúzia de internacionalizações à seleção A, agora chegam já com dezenas de jogos nas seleções jovens"..Francisco Pinheiro concorda e acrescenta-lhe outros fatores, como "a lei Bosman", que abriu caminho à internacionalização dos futebolistas portugueses e permitiu "diluir a rivalidade e a clubite na seleção", a "melhor organização da FPF, hoje uma estrutura altamente profissional", bem como o desenvolvimento dos clubes e SAD, com melhores práticas de gestão, o que permite também "formar melhores jogadores", e as já abordadas diferenças nos formatos de qualificação, "que abriram bastante o crivo".."Já não vivemos da epopeia de um pontapé inesperado como o do Carlos Manuel em 1986. Entrámos em dinâmicas muito diferentes e consolidámos, neste século, uma retórica de sucesso em volta da seleção, desde a geração dourada de Figo e Rui Costa até a esta de Cristiano Ronaldo, sem que o processo sofra com as transições geracionais", sintetiza Francisco Pinheiro..Uma retórica que se espera ver repetida agora, rumo ao Euro 2020. Afinal de contas, uma fase final sem Portugal é tão século passado.