Seis clássicos de Hong Kong para redescobrir o jovem Jackie Chan
"Quando o público vê os meus filmes, sabe que sou eu quem está ali a correr riscos e a pôr a vida em perigo. No princípio, as pessoas gritavam e pensavam que era um louco, mas agora já se habituaram." As palavras de Jackie Chan, na autobiografia Never Grow Up, surgem na sequência do pormenorizado relato de uma cena de Projet A (1983), em português intitulado Os Piratas dos Mares da China. Terá sido neste filme que Chan, já em posição de liderança numa rodagem, assumiu para si a norma de conduta de nunca recorrer a outro ser humano que não ele próprio para executar acrobacias potencialmente fatais. "O meu corpo entrou em queda livre" lê-se umas linhas antes, "mas não morri". A cena é aquela em que Chan está pendurado no ponteiro de uma torre de relógio e cai dessa altura até ao chão, apenas "amparado" por dois toldos de tecido fino que se rasgam à medida do impulso da gravidade. Uma cena que pode ser agora redescoberta no especial que a Filmin acrescenta ao seu catálogo, referente à década de 1980, quando Jackie Chan (atualmente com 69 anos) criou a sua assinatura para um futuro de sucesso desmedido, desde logo, na indústria cinematográfica de Hong Kong.
Os seis títulos que chegam à plataforma, em cópias restauradas - o referido Projet A, Project A, Part II (Jackie Chan é o Herói, 1987), Police Story (O Incorruptível, 1985), Police Story 2 (O Incorruptível Contra-Ataca, 1988), Wheels on Meals (Pancadaria Chinesa, 1984) e Dragões Para Sempre (1988) - correspondem todos eles a esse sólido e espantoso início de carreira, sem marcha-atrás e com garantia de posteridade, sob o signo da produtora Golden Harvest. São quase peças de artesanato, que ainda respiram inovação no modo como espelham uma filosofia prática e uma aparente simplicidade estudada até ao mais ínfimo detalhe para produzir, no fim de contas, um sofisticado mecanismo de ação, comédia e romance. No caso de Os Piratas dos Mares da China, trata-se mesmo de uma produção inspirada n'Os Salteadores da Arca Perdida, ou no espírito da aventura segundo Spielberg, que transforma Hong Kong num cenário dos primórdios do século XX, onde piratas desafiam a frota naval, que tem Chan como chefe. Logo aqui, Sammo Hung e Yuen Biao, os dois amigos de Chan dos tempos em que frequentou uma academia interna, aparecem como secundários, formando um trio valioso que foi fixando a sua dinâmica através de argumentos tão agitados quanto criativos.
Na sequela de Project A, tão conseguida como o filme anterior, surge no elenco Maggie Cheung (a atriz eternizada por Wong Kar-Wai em Disponível Para Amar), cuja primeira aparição ao lado de Chan acontece em O Incorruptível. Aí, ela é a namorada do protagonista, um polícia interpretado pelo próprio Jackie, claro, que salva o dia numa caótica operação para apanhar o líder de uma rede de traficantes de droga, passando depois para uma intriga de tribunal que pede a confirmação do seu heroísmo. "Ele tem a mania que é o John Wayne", ouve-se dizer a dado momento. E a verdade é que este tipo de frases estratégicas, a nomear um ator mítico do imaginário americano, tem tudo que ver com a construção de uma mitologia pessoal, que sublinha o carisma inigualável do desempenho físico (e moral!) de Chan.
Tanto os filmes Project A como os Police Story - a sequela deste último mostra o polícia em conflito com os seus superiores e envolvido numa trama complexa com um grupo de bombistas e a sua própria namorada ao barulho - têm a mão de Jackie Chan como realizador. O que significa, sobretudo para o refinado Police Story, que deparamos com extraordinárias sequências de ação, desde um bairro de lata a ser destruído por uma perseguição de carros a coreografias cada vez mais elaboradas em centros comerciais e fábricas, e ainda explosões que acrescentam uma certa poesia ao humor slapstick da luta "dançada" do ator.
Por falar em slapstick, é esse lado que se acentua nas comédias Pancadaria Chinesa e Dragões Para Sempre, ambas protagonizadas pelos "Três Dragões", Jackie Chan, Yuen Biao e Sammo Hung, com o terceiro a assumir a realização. Pancadaria Chinesa, que capta a vida nas ruas de Barcelona, é uma deliciosa paródia centrada numa carteirista esbelta que faz mover as peças de um xadrez masculino constantemente derrubado em mirabolantes façanhas de artes marciais; já Dragões Para Sempre põe Chan na pele de um advogado que chama os dois amigos para um esquema de defesa, enquanto a doçura da comédia romântica vai competindo com as proezas das cenas de luta.
São essencialmente filmes que servem esse propósito da expressão moderna do kung fu, sem deixarem de conter uma sabedoria mainstream que contamina a pureza técnica do seu fundamento. Filmes da fase anterior a Hollywood - Hora de Ponta lançou Chan na indústria americana em 1998 -, onde em 2017 viu distinguido o seu legado com um Óscar honorário.
Recuando aos inícios, percebe-se que a infância de Jackie Chan determinou a figura em que se converteu. Nascido Kong-Sang Chan, numa Hong Kong controlada pelo Reino Unido, aos 7 anos, e após uma passagem infrutífera pelo ensino regular, os pais puseram-no num colégio interno vocacionado para o ensino das artes dramáticas e performativas, incluindo artes marciais e acrobáticas, dança e música, onde permaneceu durante uma década. "Foi nesses dez anos que me tornei Jackie Chan", conta em Never Grow Up. "A minha rotina diária no China Drama Academy era esta: acordar às 5h00 para o pequeno-almoço. Praticar kung fu até o meio-dia. Almoçar. Praticar até ao jantar, às 17h00. Jantar. Praticar até à hora de dormir, às 23h00. E fazer tudo novamente no dia seguinte. Durante dez anos, dormi apenas seis horas, noite após noite. Tal como os outros meninos, dormia a um canto num tapete de enrolar."
Terá sido, sem dúvida, esta base disciplinar que se refletiu mais tarde numa postura de absoluto compromisso nas rodagens, ao recusar o uso de duplos em cenas arriscadas (pelas quais ganhou fama), o que lhe valeu muitos ossos partidos ao longo dos anos. Ainda enquanto dava os primeiros passos dentro da indústria do cinema de Hong Kong, o jovem Jackie Chan destacou-se precisamente por essa atitude de empenho misturada com um entusiasmo indisfarçável - era o primeiro a chegar ao set, o último a sair, e na ânsia de causar boa impressão, oferecia-se para os exercícios mais perigosos, sem nunca se queixar das dores com que ficava... Entrou assim numa série de filmes de baixo orçamento (convenhamos que dava jeito ter um ator e/ou duplo com este nível de profissionalismo e entrega, mesmo sendo mal pago), e em 1973 chegou a aparecer brevemente num plano com Bruce Lee, no filme O Dragão Ataca, a última produção dessa lenda das artes marciais, que morreria aos 32 anos. São apenas alguns segundos de luta, em que Chan tenta prender os braços de Lee, acabando por morrer às mãos dele com o pescoço partido, e fora de campo.
O que na altura poderia evaporar-se da memória do espectador como um detalhe corriqueiro hoje impõe-se como um instante de grande simbolismo: naquele plano curto está uma inconsciente passagem de testemunho. Jackie Chan tornar-se-ia o digno sucessor de Bruce Lee, não obstante o desejo de se distanciar da imagem dessa que era então a estrela mais influente das artes marciais. "Com a sua morte, os filmes de kung fu ficaram muito menos populares em Hong Kong. Como se o público estivesse de luto por Lee e se recusasse a assistir a filmes de ação sem ele. Apesar de muitos executivos do cinema terem tentado criar "o próximo Bruce Lee", ninguém conseguiu", escreve na autobiografia.
O resto é história e, em rigor, Chan não seria exatamente "o próximo Bruce Lee". Quer dizer, o seu estilo de luta e de acrobacias deve menos ao maior artista marcial asiático do que ao humor físico de Charlie Chaplin e Buster Keaton, referências por trás de uma marca única que, apesar do registo ligeiro, se construiu, filme a filme, sobre arrojadíssimas ideias de coreografia de ação. Os seis títulos disponibilizados neste verão pela Filmin constituem-se como provas eloquentes disso mesmo, de alguma forma refrescando um cenário atual de cinema de ação que pouco tem de imaginativo. Salvo raras exceções como Missão: Impossível - Ajuste de Contas - Parte Um, por sinal, com a sua quota de burlesco também inspirado em Buster Keaton...
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